31/01/2025

Ferro & gelo

Sideritis glacialis Boiss.


Ensinam as obras de referência que o nome Sideritis provém do grego sideros, que significa ferro. As plantas assim chamadas teriam propriedades vulnerárias, sendo especialmente indicadas para tratar feridas causadas por armas de ferro. Tudo isto se perde nas brumas da história, pois não se sabe exactamente a que plantas os antigos recorriam para esse efeito, nem que eficácia elas tinham. O que se sabe é que o género Sideritis é dos mais diversos e populosos da flora peninsular (e macaronésica, com duas dúzias de representantes nas Canárias), e é improvável que todas as espécies comunguem das mesmas hipotéticas virtudes medicinais. De facto, há diferenças marcantes entre as Sideritis dos arquipélagos atlânticos (Canárias e Madeira) e as peninsulares: as primeiras são geralmente lenhosas e têm flores tubulares, as segundas são herbáceas e têm flores com estandarte proeminente. Parece forçado incluí-las no mesmo género e, em meados do século XIX, o inglês Philip Barker-Webb chegou a defender que a estirpe insular fosse emancipada num género autónomo, a que chamou Leucophae. Mas a proposta não vingou, e os estudos filogenéticos das últimas décadas enterraram-na de vez.

Depois de termos viajado pelas Sideritis canarinas e madeirenses, está na altura de regressarmos à normalidade peninsular. Entre Espanha e Portugal contam-se trinta e quatro espécies de Sideritis, e mais de dois terços delas são endémicas da Península. A Sideritis glacialis, exclusiva do sul de Espanha e com as maiores populações ocorrendo nos cumes pedregosos e em cascalheiras da serra Nevada, é uma planta de pequeno porte, com hastes numerosas que raramente ultrapassam os 20 cm de altura. Toda ela é bastante peluda, com folhas revestidas por pêlos longos e sedosos; as flores, que têm cerca de 7 mm de diâmetro e estão reunidas em verticilos terminais, apresentam corola amarela e lábio inferior muito desenvolvido. O hábito atarracado e a pelagem sedosa são uma resposta usual às condições agrestes da alta montanha, com a neve obrigando a longos períodos de hibernação. Se descontarmos a envergadura, a pilosidade e o aspecto compacto da inflorescência, ela não é assim tão diferente de outras Sideritis que vegetam em habitats menos desafiantes, como a transmontana S. monserratiana e a algarvia S. arborescens.

17/01/2025

Onde não estamos

Quando no Verão, vestidos com roupas leves, somos perseguidos pelo calor inclemente, podemos imaginar que é no Inverno que nos sentimos bem, desde que agasalhados dos pés à cabeça com muitas camadas de roupa. Mas basta que o frio aperte durante uns dias para sabermos que o Inverno também não nos serve. Na verdade, são poucos ou nenhuns os meses do ano feitos à medida do nosso conforto: como sabiamente cantava António Variações, é só onde não estamos que estamos bem. Seguindo esse princípio de olharmos com nostalgia para o passado e com esperança para o futuro, sem nunca nos contentarmos com o presente, é adequado, nestes dias gélidos (adjectivo evidentemente exagerado, pois isto não é a Sibéria), revisitarmos as plantas que vimos num mês de Julho, sob um calor abrasivo, em Granada.

Putoria calabrica (L. f.) DC.


A planta que hoje apresentamos, e que vive em zonas pedregosas secas, de preferência calcárias, da bacia mediterrânica (desde a Espanha até à Turquia, e desde Marrocos até à Palestina), parece ter sido nomeada por De Candolle num dia de má disposição. Putoria significa malcheirosa, o que talvez seja factual, mas não é por certo a característica mais distintiva deste arbusto. A Putoria calabrica, há que reconhecê-lo, é distintamente ornamental pela folhagem miúda e brilhante, pelos cachos de flores rosadas e pelos frutos de um vermelho lustroso. Tudo isto brota como um milagre de um emaranhado de ramos rastejantes que se diriam ressequidos de tanto serem castigados pelo sol. Teria lugar de destaque em qualquer rock garden, mas é de presumir que tenha dificuldades em adaptar-se a climas menos tórridos.

O género Putoria inclui pelo menos duas espécies. A segunda, P. brevifolia, vive também em habitats rochosos e é exclusiva de Marrocos e da Argélia; distingue-se por ter flores solitárias, em vez de agrupadas em cachos como na P. calabrica. O que salta à vista nestas duas espécies é a semelhança das flores com as das aspérulas, também da família Rubiaceae. De facto, a espécie de mais ampla distribuição das duas chamou-se originalmente Asperula calabrica, mas o género Asperula hoje em dia só inclui herbáceas. Em qualquer caso, seria menos estranho chamar Asperula a estes arbustos do que mudá-los para o género Plocama, como alguns propõem invocando ponderosas razões filogenéticas.

11/01/2025

Medusa no deserto

Barranco de Garcey, Fuerteventura
Fuerteventura, a ilha mais antiga do arquipélago das Canárias e a que se localiza mais perto do continente africano, tem recantos que lembram as imagens que a NASA tem divulgado de Marte: áreas extensas sob clima árido, com solo pedregoso castanho-avermelhado (o chamado jable), perturbadas apenas pelo assobio do vento e algum redemoinho engraçado de areia. Imersos nesta quietude, caminhamos quilómetros sem ver plantas ou ouvir o som de pássaros. É tal a monotonia da paisagem que a dado momento já nos perguntamos o que estamos ali a fazer. O bom senso diz-nos, porém, que, embora nas Canárias não haja cactos como nos desertos americanos, não faltam por aqui espinhos. São inúmeras e engenhosas as soluções de adaptação da vegetação ao solo resvaladiço, à estiagem, ao sol inclemente, às tempestades de poeira e à eventual insuficiência de polinizadores. E, de facto, bastou redobrarmos a atenção para logo detectarmos exemplares de Cosentinia vellea, um feto que suporta a desidratação completa por períodos prolongados, e que aqui aproveita as fissuras mais frescas das rochas. Animados, corremos para a meta desta aventura marciana: o barranco de Garcey, lugar costeiro sem sombra e exposto ao vento, mas que conserva a humidade após os raros chuviscos. É nele que mora uma das populações mais vigorosas desta corriola admirável, que só existe em Fuerteventura e na Grã-Canária.

Convolvulus caput-medusae Lowe


Ao contrário da quase totalidade das espécies de Convolvulus que ocorrem em Portugal, que são herbáceas anuais ou perenes (a excepção é o C. fernandesii, endemismo do Cabo Espichel), o C. caput-medusae forma arbustos de pequena estatura, com um máximo de 40 cm de altura por 60 de largura. Garantidamente, no interior destes coxins, a temperatura é mais amena, há maior humidade e o vento não é tão grande incómodo; mas, para maior estabilidade e protecção da planta, as folhas são sésseis, coriáceas, densamente pubescentes, e os ramos terminam em espinhos muito rijos. O tom geral da planta é verde-cinza, onde sobressaem as flores solitárias e pequenas (quando abertas, têm 10 a 15 mm de diâmetro), com sépalas longas e corola hirsuta, branca ou levemente rosada. A floração decorre oficialmente de Janeiro a Maio, mas em Dezembro do ano passado já havia bastantes flores.

Ainda que aprecie zonas costeiras baixas e planas (algumas fotos são de exemplares do istmo de La Pared, onde o vimos em arribas e dunas marítimas), a distribuição do C. caput-medusae em Fuerteventura estende-se à montanha de Melindraga, a mais de 500 m de altitude e distando uns 7 quilómetros do mar. A semelhança de morfologia e habitat leva-nos a desconfiar que é parente (muito) próximo do C. trabutianus, que ocorre em Marrocos. Concorda?

Alguns estudos indicam que várias espécies do género Convolvulus passam bem sem a ajuda de polinizadores, e que a produção de sementes é elevada mesmo quando só há auto-polinização. Mas a viabilidade das sementes do C. caput-medusae parece reduzir-se perigosamente com a maior frequência de invernos secos que se tem registado em Fuerteventura. Se for preciso indicar aos incrédulos mais uma consequência gravosa das alterações climáticas repentinas, esteja o leitor à vontade para se servir deste exemplo.

01/01/2025

2025

Degollada de Cofete — Fuerteventura
Até o ar livre precisa de mudar de quando
em quando de ar. A circulação é um bem
inestimável para qualquer forma da natureza.
Uma competição de ciclismo que percorra uma
montanha é uma dádiva para a montanha.
Os animais e tudo o que se move
movem-se também em nome das coisas imóveis.
Sem movimento em seu redor
a montanha cairia como um vulgar edifício antigo.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)