Barranco Michelin
Usufruir de espaços naturais obriga-nos amiúde a usar caminhos que atravessam propriedades privadas. Isso não é problema de maior no norte e centro de Portugal ou nas ilhas, desde que evitemos causar estragos e fechemos todos os portões que tivermos de abrir, não vá algum gado escapar-se para onde não deve. Mas no sul do país, e em especial no Alentejo, a situação é bem diferente, parecendo às vezes que a única natureza que aí sobra para fruição pública é a faixa de poucos metros de largura encaixada entre o asfalto das estradas e as omnipresentes cercas de arame farpado; portões fechados à chave ou a cadeado são reforçados por avisos ameaçadores contra o acesso de intrusos. No sul de Espanha e nas Baleares o cenário é semelhante, com a novidade de a maioria dos espaços que poderíamos querer visitar estarem convertidos em cotos privados de caza: se pagássemos uma quota anual acederíamos a eles sem problemas, devidamente equipados com espingarda ao ombro para nos defendermos dos ataques de coelhos, perdizes e outros bichos ferozes.
No Parque Natural do Cabo de Gata-Níjar, em Almeria, e como é regra em qualquer espaço natural protegido europeu, existem vários percursos pedestres marcados, assim como lugares de acesso condicionado por razões de conservação da natureza. Inédito é que, com o aparente beneplácito das autoridades, uma empresa privada (a Michelin) se arrogue o direito de cortar, desde 2022, com vedação de arame e portão, o caminho público de acesso a uma das zonas mais cénicas do parque: a do Valle Perdido e do Barranco del Sabinar. A Michelin detém um centro de ensaios de pneus com vários quilómetros quadrados que confina com o limite norte do parque e é delimitado por altíssima cerca. O caminho agora vedado situa-se no exterior dessa cerca, em terrenos que integram o parque. É como se o Barranco del Sabinar tivesse sido instituído como zona de protecção total de acesso interdito, tendo as autoridades do parque, em vez de assumirem uma decisão que talvez se justificasse, delegado na dita empresa, ao abrigo de um espúrio respeito pela propriedade privada, a execução dessa impopular medida.


Como o Barranco del Sabinar, tanto quanto sabemos, não foi rebaptizado Barranco Michelin e ainda faz parte do Parque Natural do Cabo de Gata-Níjar, considerámos que a Michelin não tinha o direito de nos barrar o caminho e desrespeitámos a proibição de passagem. É possível rodear a vedação se nos desviarmos umas centenas de metros, mas gente esguia como nós consegue rastejar debaixo do portão. Entre a vegetação que vimos no caminho destacavam-se extensos matos de palmeira-anã (Chamaerops humilis), a surpreendente presença de uma escorcioneira (Scorzonera angustifolia) que costumamos encontrar em Trás-os-Montes, muita canafrecha (Ferula communis) erguendo ao alto, como fogo-preso, as suas bolas de flores amarelas, e uma encosta forrada de alto a baixo com Lavatera maritima (fotos acima), planta vulgar na metade oeste da bacia mediterrânica mas que em Portugal, por só existir na serra da Arrábida, integra a Lista Vermelha da Flora. Havia ainda grandes contingentes de duas espécie de limónio que se misturavam no maior dos impudores, e que ilustramos nas fotos em baixo: o de flores roxas (Limonium sinuatum) é o mais cultivado do seu género para fins ornamentais; o de flores brancas (Limonium lobulatum), menos afamado mas não menos elegante, tem folhagem e porte parecidos, mas distingue-se pelas hastes mais largamente aladas.









A maior recompensa botânica do passeio aguardava-nos justamente no barranco do Sabinar: um minúsculo malmequer de flores brancas, de não mais que 5 cm de altura, folhas lobadas semi-carnudas, e hastes simples rematadas por capítulos solitários, cobria uns poucos metros quadrados de terreno. Não tivemos dúvidas de que era esse o nosso primeiro encontro, e quem sabe o último, com tão delicada formosura. Tratava-se, soubemos depois, do Mauranthemum decipiens, planta anual que só existe no norte de África (Marrocos e Argélia) e no sudeste de Espanha — e que, a julgar pelo escasso número de avistamentos (não consta de dois portais bastante completos sobre a flora europeia e mediterrânica, Photoflora e Flora silvestre del Mediterráneo), é francamente rara. O género Mauranthemum, aparentado com Leucanthemum mas em escala miniatural, reúne quatro espécies distribuídas pela Península Ibérica e pelo norte de África, apenas duas delas (M. decipiens e M. paludosus) ocorrendo em Espanha. Segundo a chave do género na Flora Iberica, as folhas bipinatissectas que se observam numa das fotos em baixo provam inequivocamente que o que vimos foi mesmo Mauranthemum decipiens.




