24/12/2025

Impressionista


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Adélia Prado, Bagagem (Editora Record, 1976)

19/12/2025

Beldroega cornuda

O famoso deserto de Tabernas, na altura em que o visitámos, nada tinha da aridez estéril que associamos à palavra deserto. A cobertura vegetal, ainda que esparsa, era iniludível, e de tal modo rica e diversa que poucos lugares da Europa, mesmo da Europa mediterrânica, a poderiam igualar. Claro que a Primavera no sudeste de Espanha estava a ser anormalmente molhada, e das chuvas de Abril que transitaram para Maio apanhámos ainda copiosa amostra. As plantas mostravam uma pujança colectiva que, provavelmente, só se dá a ver em anos excepcionais. Mas mesmo nos anos maus as plantas estão lá, ainda que debilitadas ou temporariamente invisíveis; a diversidade vegetal ímpar é intrínseca à paisagem agreste.

Em Fuerteventura, onde já fomos duas vezes, a impressão é outra. As zonas desérticas que cobrem quase toda a ilha apresentam-se irremediavelmente despidas; as moitas secas e espinhosas da asterácea Launaea arborescens, em vez de aliviarem a desolação, parecem apenas sublinhá-la. Certamente o cenário muda nas raríssimas ocasiões em que a chuva vem refrescar a ilha. Choveu algumas vezes quando lá estivemos em Dezembro de 2024, mas não ficámos tempo suficiente para testemunhar os efeitos que tal chuva terá tido na vegetação.

Betancuria, Fuerteventura
Na ausência quase completa de vegetação arbustiva, são as plantas anuais ou vivazes que beneficiam da efémera presença da humidade. Não havendo chuva, é nas zonas elevadas que a condensação pode amenizar a secura. E é sobretudo por isso que em Fuerteventura a maioria da vegetação interessante (incluindo algumas endémicas) se concentra nos picos de Jandía, em altitudes entre os 600 e os 800 metros, ou em alguns morros e montanhas da zona central da ilha. Os montes em volta de Betancuria são especialmente compensadores para quem se dedique à exploração botânica; e, por terem declives pouco acidentados, são fáceis de percorrer a pé. Foi em Betancuria, perto do topo do Morro Veloso, que encontrármos um prado de herbáceas — o único digno desse nome que vimos em toda a ilha, revestindo de verde fresco algumas dezenas de metros quadrados de solo. Eram plantas baixas, pouco ou nada extraordinárias (vimos Anagallis arvensis, Ajuga iva, Matthiola parviflora, Dipcadi serotinum, Neatostema apulum, Plantago ovata, Reichardia tingitana, etc.), mas para a vista eram um regalo maior do que um oásis num deserto, florindo como se morassem no melhor lugar do mundo.

Notoceras bicorne (Aiton) Amo


Fazia parte da florida amostra uma planta que, pela folhagem, pelo porte rasteiro, pelo tamanho diminuto (10 a 20 cm de comprimento), e pelas minúsculas flores amarelas, nos pareceu à primeira vista uma beldroega (Portulaca olearaceae). Embora nestas latitudes mais cálidas as beldroegas apareçam durante todo o ano, desconfiámos de uma floração tão fora de época; e, observadas as flores à lupa, concluímos tratar-se afinal de uma crucífera. Os frutos, já exibidos por alguns exemplares, revelaram-se peculiares: compridos, rematados por duas protuberâncias (ou cornos), dispostos em racimos alongados. Consultado o manual, a identificação foi célere. De seu nome Notoceras bicorne, esta espécie anual tem a distinção de ser a única do seu género, e distribui-se por zonas áridas ou desérticas desde o norte de África (incluindo Canárias) até ao Paquistão. Na Europa, a sua presença restringe-se ao sudeste da Península Ibérica — a saber, às províncias de Almeria, Múrcia e Alicante. Isso mesmo pudemos confirmar in loco, quando, quatro meses depois de travarmos conhecimento com a Notoceras bicorne em Fuerteventura, a reencontrámos em Almeria.

05/12/2025

Plantas do rés-do-chão



Com a vulgarização dos telemóveis inteligentes, muito gente, para não perder pitada das novidades personalizadas que o algoritmo lhe fornece a cada instante, passou a andar sempre de pescoço vergado. Além do desgaste da visão associado a esse comportamento obsessivo, é de recear que tal vício de postura provoque a médio prazo dolorosas lesões musculares ou ósseas. Contudo, e há muito mais tempo do que os ditos aparelhos, existem profissões que também induzem os seus praticantes a manter o pescoço dobrado por períodos nocivamente longos. Uma delas é a de botânico especializado em plantas pequeninas, dessas que crescem rentes ao chão — se bem que observar de baixo a copa de árvores descomunais como sequóias ou araucárias também possa provocar torcicolos. Cá por casa gostamos de plantas pequenas, médias ou grandes, pelo que curvamos o pescoço em todas as direcções. Sendo nós amadores, esse exercício não é tão assíduo como gostaríamos, o que acaba por ser benéfico para a nossa saúde.

É de plantas rasteiras avistadas na província de Almeria que trata este texto, e uma óbvia vantagem da pequenez é que num único fascículo conseguimos acomodar quatro espécies.

Aizoon hispanicum L. [= Aizoanthemopsis hispanica (L.) H. E. K. Hartmann]


O Aizoon hispanicum é uma herbácea anual algo suculenta, de caules ramificados que não excedem os 25 cm de comprimento, com flores brancas de uns 2 cm de diâmetro, que vive em terrenos secos e pedregosos da região mediterrânica. Um dos nomes que lhe quiseram dar em português, estrelinha-das-arribas, justifica-se pela sua ocorrência (ainda que rara) no litoral algarvio e pela sua acentuada predilecção por zonas costeiras. No nordeste da Península Ibérico, porém, ela aventura-se bem longe do mar, ao longo do vale do rio Ebro.

Calendula tripterocarpa Rupr.


Versão abreviada da erva-vaqueira (Calendula arvensis), tão comum em pomares e orlas de campos de cultivo, a Calendula tripterocarpa partilha as preferências de habitat com a espécie anterior, tanto que a encontrámos no mesmo local. O que é inteiramente apropriado, pois Almeria é a única região europeia onde a planta é conhecida. De resto, a sua área de distribuição abrange Marrocos, Argélia, Tunísia e Israel; e, embora ela tenha sido igualmente assinalada nas Canárias, uma revisão do género Calendula, publicada em 2024 por quatro botânicos portugueses e um espanhol, concluiu que o que existe no arquipélago é uma espécie próxima mas distinta, endémica dessas ilhas.

Tripodion tetraphyllum (L.) Fourr.


É quase indesculpável que uma planta tão bonita como o Tripodion tetraphyllum, ademais tão frequente em paragens algarvias, tenha sido obrigada a esperar pela nossa viagem a Almeria para finalmente, com dez ou vinte anos de atraso, a exibirmos no escaparate. A desculpa, claro, é que o desfasamento entre as nossas viagens a sul e a data de floração da planta não nos permitia observá-la no seu melhor momento. Agora que o enguiço foi quebrado, cumpre-nos deixar um conselho aos nossos leitores: quem não queira sofrer frustração como a nossa deve programar as suas idas ao Algarve (ou a Almeria, por que não?) para Março ou Abril.

Lotononis lupinifolia (Boiss.) Benth. [= Leobordea lupinifolia Boiss.]


Mais uma leguminosa, e mais uma planta norte-africana que logrou meter uma lança na Europa, precisamente em Almeria. Fácil de ignorar por ser minúscula e confundível, a um olhar distraído, com alguma espécie de Lotus, a Lotononis lupinifolia parece ser sumamente rara, não havendo dela registos recentes nos dois países magrebinos (Marrocos e Argélia) onde se presume que exista. O epíteto lupinifolia é certeiro, pois as folhas digitadas compostas por cinco folíolos são iguaizinhas às dos tremoceiros (género Lupinus). O género a que a planta pertence tem suscitado alguma controvérsia: descrita em 1838, pelo botânico suiço Pierre Boissier, como Leobordea lupinifolia, em 1843 o inglês George Bentham arrumou-a no género Lotononis (amálgama de Lotus e Ononis), e em 1923 o espanhol Carlos Pau quis fixá-la no género Amphinomia, inventado por De Candolle (outro suiço) um século antes. Durante muitos anos, e como atesta a Flora Iberica, foi a proposta de Bentham que teve melhor acolhimento; mas as referências mais recentes (entre elas o Plants of the World Online e o EuroMed Plantbase) têm dado primazia ao nome original. Curiosamente, das cerca de cinquenta espécies que perfazem o género Leobordea, pelo menos quarenta estão confinadas à África do Sul.