07/03/2011

Arroz à moda do Porto



Sedum hirsutum All.

Talvez seja bom começar com uma pergunta grandiloquente, e depois regressar de mansinho a um registo mais terra-a-terra. Aqui vai então (o orador clareou a garganta com um estrondoso pigarro enquanto a audiência adoptava uma atitude de respeitosa expectativa). Poderá um território transformado por séculos ou milénios de ocupação humana, onde cada época construiu as suas casas sobre os escombros das épocas precedentes, onde não ficou pedra por revirar nem sobrou pedaço de terra virgem, poderá, enfim, tal território guardar um resquício, por ínfimo que seja, da vegetação natural que o homem tão metodicamente extirpou?

Claro que não parecia ser a resposta com maior número de adeptos. Outros ousaram exprimir a opinião contrária. A pedido do orador, um dos minoritários resumiu a sua posição. Que a vegetação, já se sabe, é irreprimível, e há muitas velhas casas, lotes abandonados, quintais que já ninguém cultiva, onde as plantas crescem como mato. Não serão das mais valiosas — os botânicos classificam-nas como ruderais ou nitrófilas, próprias de lugares fortemente alterados pela acção do homem. Algumas até serão exóticas, escapadas de jardins entretanto desaparecidos. Mas entre elas muitas há que fazem parte daquilo que seria a flora espontânea da região. Não são árvores nem arbustos, mas sim herbáceas anuais ou de vida curta sempre à espreita de um nicho onde possam instalar-se.

O orador agradeceu a intervenção com um muito bem e retomou a palavra. O nosso amigo (disse ele) tem toda a razão, podemos até enumerar algumas plantas da flora portuguesa que são muito comuns por toda a cidade: a urtiga (Urtica dioica), a erva-mercúrio (Mercurialis ambigua), as fumárias, os gerânios, os polipódios, a erva-das-paredes (Parietaria judaica), o umbigo-de-Vénus (Umbilicus rupestris); e uma vez por outra até se vêem papoilas (Papaver rhoeas) a despontar do entulho. Dificilmente, porém, alguém ficará excitado ao deparar com essas plantinhas oportunistas, que parecem medrar com a desgraça alheia. O que lhes quero hoje mostrar pertence a uma categoria bem diferente.

Enquanto falava, o grupo ia descendo a rua da Restauração, desviando-se dos automóveis estacionados sobre o passeio e dos eléctricos que passavam vazios. Ultrapassada a Casa do Vinho Verde e um outro antigo prédio ladeado por um jardim em socalcos, seguia-se um muro baixo debruçado sobre uma viela, com as ruínas do Convento de Monchique destacando-se ao fundo sobre o azul do rio. Virando à esquerda para a viela, o grupo imobilizou-se à vista de um comprido prédio de dois andares que aparentava ter sido construído há 20 ou 30 anos. Assente uns metros abaixo, à face da rua onde a viela desembocava, ostentava na fachada os dizeres Bairro Ignez.

Espreitem com cuidado (recomendou o guia), ainda é um trambolhão respeitável. Estão a ver esses tufos de florinhas brancas agarradas ao muro? O feto é também um caso especial, mas deixemos isso para depois. A planta com essa flor branca, muito vistosa e geométrica (alguém trouxe lupa?), é de uma das 17 espécies de Sedum que existem em Portugal. São plantas carnudas, adaptadas a ambientes muito secos e depauperados, que colonizam rochas, muros e telhados, e chegam a refugiar-se nos separadores das auto-estradas. Em português é costume tratá-las por arroz, talvez porque as folhas miúdas pareçam bagas. Temos assim o arroz-dos-telhados, o arroz-dos-muros, o arroz-das-paredes. Só que há arrozes e arrozes. Este Sedum hirsutum, que tem as folhas e as sépalas cobertas por uma leve penugem, se houvesse justiça passaria a chamar-se arroz-à-moda-do-Porto. Estava eu muito longe de imaginar que ele pudesse ter sobrevivido às transformações da cidade e ao ar infecto que aqui se respira. Sem ser raro, nunca é abundante, e eu só costumava encontrá-lo nas rochas do Gerês e noutros lugares impolutos do norte do país.

Notem como a maior ou menor exposição solar faz toda a diferença. As plantas mais acima, viradas para sul, recebem sol o dia inteiro, e para elas o calendário de floração vai muito adiantado. Mais abaixo, por culpa do interposto Bairro Ignez, as flores vão ter que esperar uns meses. E estes fetos que não toleram sombra estão todos refugiados cá em cima.

(E com isso terminou a lição. Os que traziam máquina fotográfica debruçavam-se com algum perigo para captar uma macro das diminutas flores. Outros juntavam-se a conversar. Ao fim de algum tempo o grupo começou a dispersar-se, com pena de estas sessões de Botânica na cidade não acontecerem mais vezes.)


Convento de Monchique visto da rua da Restauração (Porto)

3 comentários :

bettips disse...

Um belo e nostálgico ângulo. Essa Rua da Restauração tem um debruçar sobre o rio ímpar!

jeanne disse...

O grupo Botánica na cidade foi inventado a prol do post ou existe mesmo?

Paulo Araújo disse...

Que eu saiba, não existe nada de parecido - mas gostava que existisse.