O rubor do sargaço
Coimbra, 2 de Fevereiro de 1958 — Enquanto via as imagens — uma arte insuspeitada trazida à tona do grande deserto africano —, ia-me consolando com a ideia de que nem a própria natureza comete crimes perfeitos. Engole uma civilização, fica-se a rir com um riso saariano, e tudo parece arrumado. Mas às tantas, o olho insubmisso dum grafito espreita por debaixo das areias, e pronto: a tramóia descobre-se, os entendidos cavam, e patenteiam à incredulidade dos jurados o esqueleto da vítima devorada.
E isto dá esperança, parecendo que não. A certeza de que não há facto soterrado sem claridade futura, de que aparece sempre um caco dos acontecimentos a desafiar a curiosidade dos vindoiros, embora melancólica, é consoladora. Mesmo póstuma, adiada para o dia do juízo, a verdade sabe bem.
Miguel Torga, Diário (D. Quixote, 2010)
1 comentário :
Flor maravilhosa!
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