Memórias da água
A passagem de um barco deixa na água um rasto de espuma que depressa se desfaz. O mar não guarda memórias à superfície, só nas profundezas, e a escrita na água é tão instantânea que não chega a perceber-se. Pelo contrário, a escrita da água, visível no recorte acidentado de uma costa ou no leito cavado de um rio, é tão duradoura que atravessa eras geológicas, e permanecerá legível muito depois de se terem apagado todas as palavras e signos que a humanidade deixou registados.
No limite norte do deserto de Tabernas, à vista da serra de Los Filabres, abre-se avantajada planície sazonalmente coberta pela flores brancas da Linaria nigricans. As raras chuvas infiltram-se rapidamente na terra ressequida, parecendo impossível que alguma vez as águas superficiais aqui tenham formado sequer o esboço de um regato; mas a dada altura chama-nos a atenção uma ligeira depressão no terreno. Com uma vintena de metros de largura, o sulco estende-se indefinidamente, mais ou menos em linha recta, no sentido norte-sul. Mais arenoso e cascalhento do que os terrenos em redor, esse leito de um improvável rio acolhe uma vegetação variada que contrasta com a aridez circundante. A promessa de água, certificada pela assinatura inconfundível de remotas águas passadas, convenceu as plantas de que aquele era bom lugar para se instalarem. Da vida vegetal que lá pudemos observar deixamos de seguida incompletíssima amostra.

Com mais de 3200 espécies descritas, o género Astraglaus é o mais diverso à face da Terra, e impressiona pouco que sejam 40 as espécies do género existentes na Península Ibérica. A maioria delas são plantas anuais rasteiras, mas dentro desse grupo o Astraglaus longidentatus, endémico do sudeste de Espanha e do norte de África, é dos mais distintivos pelas suas flores comparativamente grandes (2 cm de diâmetro), que aparecem dispostas em racimos alongados em vez de formarem cachos compactos.




A simples observação das flores convence-nos de que os géneros Antirrhinum e Chaenorhinum estão estreitamente aparentados. O primeiro inclui as conhecidas e amplamente cultivadas bocas-de-lobo; no segundo reúnem-se plantas de menor porte e de flores diminutas, ainda que dotadas de esporão proeminente. O Chaenorhinum grandiflorum não foge ao figurino habitual do género nem tem flores especialmente grandes, apesar do epíteto específico. Trata-se de um endemismo ibérico, exclusivo das províncias de Granada, Almeria e Múrcia, e dele se distinguem duas subespécies. A subespécie carthaginense, acima ilustrada, apresenta caules hirsutos e glandulosos, ao contrário da subespécie nominal.





A Silene adscendens, um raro assobio exclusivo do deserto de Tabernas e arredores, faz suspeitosamente lembrar a vulgar Silene littorea, moradora nas areias dunares de boa parte da costa ibérica, incluindo todo o litoral português do Minho ao Algarve. De facto, a Flora Iberica até trata a primeira como subespécie da segunda — mas, ainda que subtis, as diferenças entre elas são indesmentíveis. As folhas da S. adscendens são estreitas, quase lineares (sobretudo as basais), lassamente dispostas; as da S. littorea são largas, densamente concentradas em rosetas basais. Quanto às flores, as da S. adscendens apresentam em geral o cálice inclinado enquanto que as da S. littorea o têm erecto.



Para o fim deixamos um feliz reencontro. A Ononis natrix, ou joina-dos-matos, é uma leguminosa arbustiva, ainda que pouco lenhosa, de não mais de um metro de altura, distribuída por quase toda a Europa e norte de África mas escassa em Portugal. Sabemos dela na margem portuguesa do rio Douro em Bemposta, e há notícia de avistamentos esporádicos no Algarve, no Alentejo e no litoral centro. Foi um brinde inesperado que ela se nos tenha mostrado toda florida em pleno deserto.