17/10/2025

Memórias da água



A passagem de um barco deixa na água um rasto de espuma que depressa se desfaz. O mar não guarda memórias à superfície, só nas profundezas, e a escrita na água é tão instantânea que não chega a perceber-se. Pelo contrário, a escrita da água, visível no recorte acidentado de uma costa ou no leito cavado de um rio, é tão duradoura que atravessa eras geológicas, e permanecerá legível muito depois de se terem apagado todas as palavras e signos que a humanidade deixou registados.

No limite norte do deserto de Tabernas, à vista da serra de Los Filabres, abre-se avantajada planície sazonalmente coberta pela flores brancas da Linaria nigricans. As raras chuvas infiltram-se rapidamente na terra ressequida, parecendo impossível que alguma vez as águas superficiais aqui tenham formado sequer o esboço de um regato; mas a dada altura chama-nos a atenção uma ligeira depressão no terreno. Com uma vintena de metros de largura, o sulco estende-se indefinidamente, mais ou menos em linha recta, no sentido norte-sul. Mais arenoso e cascalhento do que os terrenos em redor, esse leito de um improvável rio acolhe uma vegetação variada que contrasta com a aridez circundante. A promessa de água, certificada pela assinatura inconfundível de remotas águas passadas, convenceu as plantas de que aquele era bom lugar para se instalarem. Da vida vegetal que lá pudemos observar deixamos de seguida incompletíssima amostra.

Astragalus longidentatus Chater


Com mais de 3200 espécies descritas, o género Astraglaus é o mais diverso à face da Terra, e impressiona pouco que sejam 40 as espécies do género existentes na Península Ibérica. A maioria delas são plantas anuais rasteiras, mas dentro desse grupo o Astraglaus longidentatus, endémico do sudeste de Espanha e do norte de África, é dos mais distintivos pelas suas flores comparativamente grandes (2 cm de diâmetro), que aparecem dispostas em racimos alongados em vez de formarem cachos compactos.

Chaenorhinum grandiflorum subsp. carthaginense (Pau) Benedí


A simples observação das flores convence-nos de que os géneros Antirrhinum e Chaenorhinum estão estreitamente aparentados. O primeiro inclui as conhecidas e amplamente cultivadas bocas-de-lobo; no segundo reúnem-se plantas de menor porte e de flores diminutas, ainda que dotadas de esporão proeminente. O Chaenorhinum grandiflorum não foge ao figurino habitual do género nem tem flores especialmente grandes, apesar do epíteto específico. Trata-se de um endemismo ibérico, exclusivo das províncias de Granada, Almeria e Múrcia, e dele se distinguem duas subespécies. A subespécie carthaginense, acima ilustrada, apresenta caules hirsutos e glandulosos, ao contrário da subespécie nominal.

Silene adscendens Lag.


A Silene adscendens, um raro assobio exclusivo do deserto de Tabernas e arredores, faz suspeito­samente lembrar a vulgar Silene littorea, moradora nas areias dunares de boa parte da costa ibérica, incluindo todo o litoral português do Minho ao Algarve. De facto, a Flora Iberica até trata a primeira como subespécie da segunda — mas, ainda que subtis, as diferenças entre elas são indesmentíveis. As folhas da S. adscendens são estreitas, quase lineares (sobretudo as basais), lassamente dispostas; as da S. littorea são largas, densamente concentradas em rosetas basais. Quanto às flores, as da S. adscendens apresentam em geral o cálice inclinado enquanto que as da S. littorea o têm erecto.

Ononis natrix L.


Para o fim deixamos um feliz reencontro. A Ononis natrix, ou joina-dos-matos, é uma leguminosa arbustiva, ainda que pouco lenhosa, de não mais de um metro de altura, distribuída por quase toda a Europa e norte de África mas escassa em Portugal. Sabemos dela na margem portuguesa do rio Douro em Bemposta, e há notícia de avistamentos esporádicos no Algarve, no Alentejo e no litoral centro. Foi um brinde inesperado que ela se nos tenha mostrado toda florida em pleno deserto.

08/10/2025

Parasitas de muitas cores

Quando pensamos em plantas, vêm-nos à mente componentes vegetais que se situam logo acima do chão, como os troncos, os ramos cobertos de folhas verdes, as hastes florais. Mas nem todas as plantas cabem nesta descrição. As plantas parasitas não têm partes verdes que realizem fotossíntese, ou têm-nas muito reduzidas, e portanto dependem de outras plantas para sobreviverem e completarem o seu ciclo de vida. Ligam-se aos ramos de árvores, arbustos e herbáceas (é o caso do Arceuthobium azoricum, do Viscum album, da Cuscuta europaea); ou inserem a palhinha com que sugam o alimento directamente nas raízes de outras plantas (como as espécies do género Orobanche ou a Monotropa hypopitys), sendo mais frequentes em locais abertos, sem demasiada vegetação, de solo arenoso ou húmido por ser mais fácil de penetrar. Destas, só conhecemos as inflorescências, que nascem depois de uma fase subterrânea relativamente longa.

Cistanche lutea (Desf.) Hoffmanns. & Link

Cynomorium coccineum L.


Orobanche cernua L.
Que condições ambientais ou evolutivas favoreceram o parasitismo entre as plantas? Não há ainda uma explicação convincente para a origem de plantas que abdicaram da sua capacidade de fabricar seiva e da sua invejável auto-suficiência, restando-nos a impressão de que a ocasião fez o ladrão. As vantagens são óbvias: as plantas parasitas resolvem com esse estratagema dois grandes problemas, o da habitação e o do acesso a nutrientes e água, o que lhes permite colonizar habitats que, de outro modo, lhes seriam adversos.



Têm, porém, de ser cautelosas, não vão a gulodice ou o excesso de inquilinos matar o hospedeiro. Por exemplo, em algumas espécies de parasitas as sementes são muito pequenas, e têm um período de dormência curto, precisando de encontrar um hospedeiro mal se soltem e sejam levadas pelo vento ou pela chuva. Se isso parece fácil para as que se agarram a ramos ou troncos, o mesmo não se pode dizer das sementes que têm de localizar uma raiz debaixo do solo. Para que não se fixem na planta que hospeda a mãe, pondo em risco a sobrevivência da família, possuem mecanismos de leitura de sinais químicos que lhes permitem detectar raízes mais distantes ou estimular o seu crescimento em plantas vizinhas.

Não se sabe se o hospedeiro retira desse negócio de alojamento local algum benefício, mas é provável que, em alguns casos, o parasitismo seja útil às duas plantas envolvidas. Na maioria, porém, as plantas parasitas infligem danos consideráveis às hospedeiras.

Salsola oppositifolia Desf.

26/09/2025

Três têucrios



Como vimos no fascículo anterior, o que singulariza a flora do litoral de Menorca, sobretudo a do norte da ilha, é a presença de socarrells — ou seja, de um grupo heterogéneo de espécies que adoptaram, todas elas, a forma de coxins espinhosos. A somar aos legítimos socarrells, ocorrem no litoral da ilha outras plantas de forma almofadada mas menos (ou mesmo nada) espinhosas, às vezes nem sequer lenhosas. Tudo isto é exemplificado pelos três alegres têucrios que exibimos hoje.

Teucrium capitatum subsp. majoricum (Rouy) Nyman


Aqui está um socarrell honorário que não magoa ninguém: as hastes do Teucrium capitataum subsp. majoricum são herbáceas, nada rígidas, inteiramente despojadas de espinhos. Os caules decumbentes das plantas mais desenvolvidas acabam por formar calotes esféricas que não desmerecem das dos verdadeiros socarrells, mas o nome que se lhe dá em Menorca (frígola borda) indica que tal artifício não enganou os habitantes da ilha. Esta subespécie do T. capitatum é endémica das Baleares, e distingue-se pelas flores rosadas e por só ter inflorescências terminais; a forma da espécie que ocorre em Portugal apresenta flores brancas e um aspecto muito menos compacto.

Teucrium subspinosum Pourr. ex Willd.


Os dois restantes têucrios que mostramos hoje são ambos pequenos arbustos de base lenhosa, moderamente espinhosos. Um deles, T. subspinosum, é um endemismo menorquino; o outro, T. balearicum, é partilhado com Maiorca. Distingui-los é problemático, e daí ser desculpável que, em Menorca, eles sejam indistintamente conhecidos como frígolas. Têm os dois a mesma folhagem miúda, as mesmas pequenas flores rosadas, a mesma ramificação intrincada, o mesmo hábito rasteiro. Se atentarmos nos cálices, diz-nos a Flora Iberica que o T. subspinosum os tem mais densamento hirsutos, enquanto que no T. balearicum a indumentação é mais rala, formada por pêlos aplicados. Por esse critério, as plantas nas fotos que publicamos (T. subspinosum em cima, T. balearicum em baixo) estão correctamente identificadas. Mas a Flora Iberica apresenta outro critério, o do número de flores por haste (maior no T. subspinosum), que nos levaria a trocar as identificações. De facto, a delimitação das espécies neste grupo de têucrios em Menorca é, ainda hoje, controversa. Talvez o "verdadeiro" T. balearicum ocorra apenas em Maiorca, e o que haja em Menorca sejam apenas variações do T. subspinosum.

Teucrium balearicum (Pau) Castrov. & Bayon [ou talvez não]

18/09/2025

Coxins de Menorca



Em Maio deste ano voltámos a Menorca com o propósito de ver socarrells em flor. Trata-se de um grupo heterogéneo de plantas que, face a um ambiente difícil de colonizar, adquiriram morfologias semelhantes por seguirem a mesma fórmula de sucesso: tornaram-se arbustos lenhosos em forma de coxim, de contorno mais ou menos arredondado, com talos tortuosos de pontas afiadas e ramagem intrincada e espinhosa. Em Menorca, este fenómeno curioso ocorreu com espécies que ocupam habitats secos e expostos do litoral, que o vento fustiga permanentemente e onde o solo é pedregoso e pouco firme. Para completar o carácter singular desta evolução, noutros locais mais acolhedores e estáveis, algumas destas plantas têm versões que são herbáceas ou trepadeiras não espinhosas.

Launaea cervicornis (Boiss.) Font Quer & Rothm.


A região mediterrânica é rica em espécies do género Launaea, mas esta é um endemismo das ilhas Baleares. Talvez seja o socarrell mais frequente dos que aqui mostraremos, ocorrendo em quase em todo o litoral de Menorca. Aninha-se sem dificuldade em fendas de rochedos calcários costeiros, e floresce abundantemente entre Maio e Julho.

Femeniasia balearica (J. J. Rodr.) Susanna


Este foi o socarrell mais difícil de encontrar. As fotos foram tiradas numa ladeira seca costeira, em Cala Mica. Além de rara, esta asterácea confunde-se, a um olhar desatento, com a anterior quando não está florida. É um endemismo de Menorca, e distingue-se pelos talos grossos e os espinhos agrupados em conjuntos de três. As flores, que surgem de Maio a Junho, parecem-se com as do género Centaurea. Com apenas uma excepção, os restantes socarrells de Menorca pertencem à família das leguminosas.

Anthyllis hystrix (Barceló) Cardona, J. Cont. & E. Sierra


Os coxins deste socarrell, com uns 60 cm de altura mas frequentemente muitos metros de largura, formam matos extensos, vistosos em Maio pelas flores amarelas que cobrem toda a planta. Habita fragas íngremes e rochedos em locais ventosos do litoral. É mais um endemismo de Menorca, fácil de encontrar na costa norte da ilha. A única espécie do género que ocorre em Portugal continental, Anthyllis vulneraria, é uma herbácea rasteira que surge em habitats muito diversos, desde orlas de bosques a areias litorais.

Astragalus balearicus Chater


Este socarrell é mais um endemismo das ilhas Baleares cujo período de floração também inclui Maio. A ramagem é densa, destacando-se nela espinhos erectos e ameaçadores. Prefere solo calcário e ocorre por vezes em matos cerrados. Nota-se alguma semelhança, no emaranhado de talos e na morfologia das flores, com o Astragalus tragacantha, das arribas calcárias do litoral sudoeste do Algarve.

Dorycnium fulgurans (Porta) Lassen


Este é decerto o socarrell mais surpreendente, e é também endémico do litoral das ilhas Baleares. Pertence ao mesmo género e tem fortes parecenças com a herbácea Dorycnium pentaphyllum, sobretudo pela ramagem, glauca e penugenta, e pelas flores brancas pequeninas. Distingue-se pelo arranjo em coxim, que lhe permite segurar-se ao chão mesmo sob forte ventania. O intervalo de floração destas duas espécies de Dorycnium é o mesmo (Abril a Junho) e ambas ocorrem em prados secos. No cabo Favaritx, onde a dose de vento é em geral generosa e persistente, há uma população notável desta forma bizarra de Dorycnium.

Smilax aspera var. balearica Willk.


A Smilax aspera var. balearica, praticamente sem folhas e com ramos grossos não trepadores, parece um engano de fabrico. A sua morfologia coincide em quase tudo com a da trepadeira Smilax aspera, que é assídua nos nossos bosques e é comummente conhecida como salsaparrilha. Contudo, os ramos secos que servem de espinhos e o arranjo almofadado são, de novo, indício de uma adaptação que permitiu a sua sobrevivência no litoral pedregoso de Menorca, onde é particularmente frequente em Punta Nati. Curiosamente, em Maiorca, a mesma variedade de Smilax também ocorre no interior da ilha.