09/11/2025

Maleiteiras maiores e menores

Contando com mais de 2000 espécies distribuídas por zonas tropicais, subtropicais ou temperadas de todo o mundo, o género Euphorbia ocupa, de acordo com as mais recentes contagens, apenas o sexto lugar no campeonato dos géneros botânicos mais populosos. Contudo, se o critério for o da diversidade morfológica, é difícil que outro género lhe leve a palma: desde pequenas árvores (como a açoriana E. santamariae ou a madeirense E. mellifera) a plantas suculentas com aspecto cactóide (como a E. canariensis ou a E. handiensis), desde arbustos lenhosos profusamente ramificados a herbáceas anuais ou perenes dos mais diversos tamanhos, desde plantas agressivamente espinhentas (como a E. milii) a outras delicadamente inermes (como a E. pulcherrima), não há forma ou feitio que as eufórbias não tenham alguma vez experimentado. E a pergunta impõe-se: que haverá de comum em plantas aparentemente tão diversas para elas serem arrumadas no mesmo género botânico?

É nas flores que as plantas revelam a sua filiação, e não há inflorescências mais peculiares que as das eufórbias. A componente básica é o ciátio, pequena estrutura em forma de taça que contém numerosas flores masculinas rudimentares, reduzidas a um único estame, rodeando uma flor feminina com três estigmas; os frutos são cápsulas com três sulcos longitudinais. (Esta descrição está ilustrada nas fotos 7 a 9 em baixo.) Não há pétalas nem sépalas, mas em certas espécies tropicais o conjunto pode ser alegrado por brácteas de cores vistosas. Nas espécies europeias, a modesta função ornamental, destinada apenas a atrair polinizadores, é tarefa dos quatro ou cinco nectários, amiúde amarelos ou vermelhos, que bordejam cada ciátio.

Mesmo que não estejam armadas com espinhos, as eufórbias sabem defender-se. Quase todas as espécies do género produzem um látex altamente irritante para a pele, e é por isso péssima ideia arrancá-las à mão ou por meios mecânicos sem nos protegermos com luvas e viseiras. Daí muitas delas serem conhecidas por nomes como leiteira ou maleiteira: o leite não é de beber, mas há a crença, nem sempre infundada, de que as propriedades cáusticas do látex podem ajudar a sarar certas feridas ou maleitas da pele.

Euphorbia squamigera Loisel.


As maleiteiras que hoje mostramos, todas elas fotografadas no sudeste de Espanha, entre Granada e Almeria, cingem-se à ortodoxia do que deve ser uma eufórbia europeia normal. Por nada terem de extravagante, é como se fossem já nossas velhas conhecidas mesmo quando as encontramos pela primeira vez.

Formando moitas arredondadas com cerca de um metro de altura, a Euphorbia squamigera aguardava-nos na estrada da vertente norte da serra de Alhamilla que liga o pico Colativí ao deserto de Tabernas. Fiadas de arbustos que diríamos abundantemente floridos de amarelo guarneciam algumas dezenas de metros da berma da estrada. Feita a paragem e a obrigatória inspecção, o arbusto revelou-se uma eufórbia, e o amarelo vistoso afinal pertencia às brácteas e não às flores. A Euphorbia squamigera, que se reparte entre o sul de Espanha e o norte de África, parece ser escassa em toda a sua área de distribuição, e por isso serão poucos os troços rodoviários como este. É de estranhar que, em toda a descida, não nos tenhamos cruzado com mais gente que fosse, como nós, apreciar tão raro espectáculo.

Euphorbia nevadensis Boiss. & Reut.


Reduzindo a escala, debruçamo-nos agora sobre maleiteiras de menor porte. Tendo nós subido ao topo da serra Nevada para encontrar a Euphorbia nevadensis, garante a Flora Iberica que tal esforço não seria necessário, pois a espécie vegeta, a altitudes pouco superiores a 1000 metros, na generalidade das cadeias montanhosas do sul de Espanha. Trata-se de uma herbácea perene, rizomatosa, glabra, com múltiplos caules erectos ou prostrados, cada qual com não mais que 40 cm de comprimento. As inflorescências são umbeliformes, os frutos apresentam-se moderamente rugosos, e os nectários, de um amarelo alaranjado, são rematados por curtos apêndices.

Euphorbia flavicoma DC.


A Euphorbia flavicoma, por nós também encontrada na serra Nevada, é uma espécie de distribuição mediterrânica que só em 2018 passou a integrar oficialmente a flora portuguesa, ao ser descoberta por Miguel Porto algures no concelho de Rio Maior. Na serra Nevada, talvez por adaptação às condições agrestes, é uma planta rasteira, miúda e bastante discreta. Distingue-se pelas inflorescências curtas e pouco ramificadas, pelos nectários vermelhos e sem apêndices, e pelas cápsulas muito verrucosas.

Euphorbia dracunculoides subsp. inconspicua (Ball) Maire


A Euphorbia dracunculoides, a menor das maleiteiras hoje no escaparate, é uma planta anual de porte exíguo, raramente excedendo os 20 cm de altura. Encontrámo-la no Cabo de Gata, no litoral de Almeria. Para lhe vermos os detalhes, a ajuda de uma lupa é indispensável, pois cada ciátio tem de 1 a 2 mm de diâmetro. Assim equipados, podemos constatar que os nectários apresentam apêndices longos e filiformes, e que as cápsulas são inteiramente lisas e com sulcos bem vincados.

02/11/2025

Amarelo flutuante

Custa-nos a crer que as baleias, com pulmões como nós, sobrevivam nos oceanos. Com a pressão elevada a alguns quilómetros de profundidade, por que não implodem, como aconteceu ao submergível Titan? E a temperatura muito baixa no fundo do mar não as afecta? E, sendo tão volumosas, como é que conseguem ficar tanto tempo submersas sem respirar? O mar, a poucos quilómetros abaixo da superfície, coloca tantos riscos à nossa sobrevivência que os vários museus interactivos sobre a baleação nas ilhas dos Açores clarificam também para os mais incrédulos a morfologia e o funcionamento do corpo das baleias. Pois bem, as baleias têm costelas articuladas para que os pulmões sejam flexíveis e, ao colapsarem em zonas mais profundas do mar, não se estraguem. Conseguem impedir a respiração pelo nariz e boca quando submergem (nós não, mas assim podemos dormir), e todos os orgãos possuem uma grande capacidade de guardar oxigénio, possibilitando-lhes estar longos períodos sem respirar. Contêm grossas camadas subcutâneas de gordura que as mantêm à temperatura adequada e as alimentam se a comida escasseia. Poderíamos juntar muitos outros pormenores da notável adaptação destes mamíferos à vida no mar, mas o essencial que falta mencionar é a migração que efectuam anualmente para locais tropicais quando o Inverno se instala no hemisfério norte/sul -- uma rotina que nós deveríamos também cumprir para não adoecermos com o frio, os dias mais curtos e a mudança da hora.

Utricularia gibba L.


As plantas aquáticas, muito mais frágeis e de muito menor porte, não são menos hábeis a contornar os inconvenientes de morar dentro de água. E ainda que, em geral, não tenham colonizado, como as baleias, habitats a grande profundidade, alguns dos mecanismos para se defenderem das adversidades que a vida na água lhes coloca nem são muito distintos dos das baleias. Por exemplo, são plantas leves e flexíveis, para flutuarem e não quebrarem pela força da água. Ao contrário das plantas terrestres, cujas folhas precisam de evitar a perda de água por transpiração, as aquáticas necessitam de evitar apodrecer com o excesso de humidade. Por isso, as folhas são cerosas, para não se encharcarem, e possuem mecanismos químicos que repelem os micróbios. Os talos contêm uma rede de canais que se enchem de ar e distribuem internamente oxigénio pelas várias partes da planta, impedindo que definhem. As raízes espalham-se por largas extensões para captarem a pouca luz que se infiltra, e são capazes de absorver oxigénio e nutrientes directamente da água. E as flores, que precisam de atrair polinizadores, nascem no topo de hastes erectas, protegidas da água enquanto abrem, amadurecem e frutificam. Com tamanho sucesso de adaptação, decerto estas plantas não gostariam de viver noutro lugar.



Vem isto a propósito de uma planta carnívora que vive perto do litoral, em lagoas de fundo arenoso com pouca água, em caudal quase parado, ou em charcos temporários. Embora de distribuição ampla, é rara na Península Ibérica. Havendo registo da sua presença no litoral entre Aveiro e a Figueira da Foz, fomos à procura da nossa lagoa onde ela pudesse ocorrer. Encontrámo-la na Tocha, escondida entre pinhais e dunas, perto de um brejo onde mora uma população bem instalada de Utricularia australis (ou Utricularia × neglecta). As flores da U. gibba são muito mais pequenas do que as da U. australis e, como comprovam as fotos, o formato delas é também distinto.

Utricularia × neglecta Lehm.


Estas duas utriculárias estão em situação vulnerável em Portugal Continental. As suas populações, há muito escassas, continuam em declínio à medida que as depressões inundadas e as zonas húmidas de baixa altitude desaparecem ou se degradam. Se listarmos as alterações ao regime hidrológico causadas pelas atividades agrícolas, pelas drenagens para construção e pelas secas cada vez mais frequentes, e as juntarmos à poluição orgânica e à expansão aparentemente incontrolável de plantas exóticas aquáticas, ninguém duvidará de que a situação destes habitats excepcionais é altamente precária.

17/10/2025

Memórias da água



A passagem de um barco deixa na água um rasto de espuma que depressa se desfaz. O mar não guarda memórias à superfície, só nas profundezas, e a escrita na água é tão instantânea que não chega a perceber-se. Pelo contrário, a escrita da água, visível no recorte acidentado de uma costa ou no leito cavado de um rio, é tão duradoura que atravessa eras geológicas, e permanecerá legível muito depois de se terem apagado todas as palavras e signos que a humanidade deixou registados.

No limite norte do deserto de Tabernas, à vista da serra de Los Filabres, abre-se avantajada planície sazonalmente coberta pela flores brancas da Linaria nigricans. As raras chuvas infiltram-se rapidamente na terra ressequida, parecendo impossível que alguma vez as águas superficiais aqui tenham formado sequer o esboço de um regato, mas a dada altura chama-nos a atenção uma ligeira depressão no terreno. Com uma vintena de metros de largura, o sulco estende-se indefinidamente, mais ou menos em linha recta, no sentido norte-sul. Mais arenoso e cascalhento do que os terrenos em redor, esse leito de um improvável rio acolhe uma vegetação variada que contrasta com a aridez circundante. A promessa de água, certificada pela assinatura inconfundível de remotas águas passadas, convenceu as plantas de que aquele era bom lugar para se instalarem. Da vida vegetal que lá pudemos observar deixamos de seguida incompletíssima amostra.

Astragalus longidentatus Chater


Com mais de 3200 espécies descritas, o género Astraglaus é o mais diverso à face da Terra, e impressiona pouco que sejam 40 as espécies do género existentes na Península Ibérica. A maioria delas são plantas anuais rasteiras, mas dentro desse grupo o Astraglaus longidentatus, endémico do sudeste de Espanha e do norte de África, é dos mais distintivos pelas suas flores comparativamente grandes (2 cm de diâmetro), que aparecem dispostas em racimos alongados em vez de formarem cachos compactos.

Chaenorhinum grandiflorum subsp. carthaginense (Pau) Benedí


A simples observação das flores convence-nos de que os géneros Antirrhinum e Chaenorhinum são estreitamente aparentados. O primeiro inclui as conhecidas e amplamente cultivadas bocas-de-lobo; no segundo reúnem-se plantas de menor porte e de flores diminutas, ainda que dotadas de esporão proeminente. O Chaenorhinum grandiflorum não foge ao figurino habitual do género e, apesar do epíteto específico, não tem flores especialmente grandes. Trata-se de um endemismo ibérico, exclusivo das províncias de Granada, Almeria e Múrcia, e dele se distinguem duas subespécies. A subespécie carthaginense, acima ilustrada, apresenta caules hirsutos e glandulosos, ao contrário da subespécie nominal.

Silene adscendens Lag.


A Silene adscendens, um raro assobio exclusivo do deserto de Tabernas e arredores, faz suspeito­samente lembrar a vulgar Silene littorea, moradora nas areias dunares de boa parte da costa ibérica, incluindo todo o litoral português do Minho ao Algarve. De facto, a Flora Iberica até trata a primeira como subespécie da segunda — mas, ainda que subtis, as diferenças entre elas são indesmentíveis. As folhas da S. adscendens são estreitas, quase lineares (sobretudo as basais), lassamente dispostas; as da S. littorea são largas, densamente concentradas em rosetas basais. Quanto às flores, as da S. adscendens apresentam em geral o cálice inclinado enquanto que as da S. littorea o têm erecto.

Ononis natrix L.


Para o fim deixamos um feliz reencontro. A Ononis natrix, ou joina-dos-matos, é uma leguminosa arbustiva, ainda que pouco lenhosa, de não mais que um metro de altura, distribuída por quase toda a Europa e norte de África mas escassa em Portugal. Sabemos dela na margem portuguesa do rio Douro em Bemposta, e há notícia de avistamentos esporádicos no Algarve, no Alentejo e no litoral centro. Foi um brinde inesperado que ela se nos tenha mostrado toda florida em pleno deserto.

08/10/2025

Parasitas de muitas cores

Quando pensamos em plantas, vêm-nos à mente componentes vegetais que se situam logo acima do chão, como os troncos, os ramos cobertos de folhas verdes, as hastes florais. Mas nem todas as plantas cabem nesta descrição. As plantas parasitas não têm partes verdes que realizem fotossíntese, ou têm-nas muito reduzidas, e portanto dependem de outras plantas para sobreviverem e completarem o seu ciclo de vida. Ligam-se aos ramos de árvores, arbustos e herbáceas (é o caso do Arceuthobium azoricum, do Viscum album, da Cuscuta europaea); ou inserem a palhinha com que sugam o alimento directamente nas raízes de outras plantas (como as espécies do género Orobanche ou a Monotropa hypopitys), sendo mais frequentes em locais abertos, sem demasiada vegetação, de solo arenoso ou húmido por ser mais fácil de penetrar. Destas, só conhecemos as inflorescências, que nascem depois de uma fase subterrânea relativamente longa.

Cistanche lutea (Desf.) Hoffmanns. & Link

Cynomorium coccineum L.


Orobanche cernua L.
Que condições ambientais ou evolutivas favoreceram o parasitismo entre as plantas? Não há ainda uma explicação convincente para a origem de plantas que abdicaram da sua capacidade de fabricar seiva e da sua invejável auto-suficiência, restando-nos a impressão de que a ocasião fez o ladrão. As vantagens são óbvias: as plantas parasitas resolvem com esse estratagema dois grandes problemas, o da habitação e o do acesso a nutrientes e água, o que lhes permite colonizar habitats que, de outro modo, lhes seriam adversos.



Têm, porém, de ser cautelosas, não vão a gulodice ou o excesso de inquilinos matar o hospedeiro. Por exemplo, em algumas espécies de parasitas as sementes são muito pequenas, e têm um período de dormência curto, precisando de encontrar um hospedeiro mal se soltem e sejam levadas pelo vento ou pela chuva. Se isso parece fácil para as que se agarram a ramos ou troncos, o mesmo não se pode dizer das sementes que têm de localizar uma raiz debaixo do solo. Para que não se fixem na planta que hospeda a mãe, pondo em risco a sobrevivência da família, possuem mecanismos de leitura de sinais químicos que lhes permitem detectar raízes mais distantes ou estimular o seu crescimento em plantas vizinhas.

Não se sabe se o hospedeiro retira desse negócio de alojamento local algum benefício, mas é provável que, em alguns casos, o parasitismo seja útil às duas plantas envolvidas. Na maioria, porém, as plantas parasitas infligem danos consideráveis às hospedeiras.

Salsola oppositifolia Desf.