26/06/2025

Vida no mar de plástico



Calcula-se que as estufas da província de Almeria, no sudeste de Espanha, ocupem uma área de uns 400 km2, o que é, aproximadamente, dez vezes a área da cidade do Porto. Seria como se, entre a foz do Douro e Vila do Conde, e entrando pelo interior até Santo Tirso e Valongo, tivéssemos um imenso quadrilátero preenchido com estufas brancas que não deixassem uma nesga de terreno livre. Onde viveriam as pessoas? Para onde poderiam elas fugir para escaparem à visão apocalíptica do mar de plástico?

Almeria, felizmente, é bastante extensa, de modo que a área coberta por estufas representa menos de 5% da superfície total da província. Mas, estando concentradas nas zonas baixas junto à costa, onde também se situam as povoações mais populosas, as estufas acabam por ser demasiado visíveis. As cidades de Níjar, Campohermoso, El Ejido e várias outras são pequenas ilhas urbanas inteiramente rodeadas pela branca extensão das estufas: para entrar ou sair dessas cidades precisamos de atravessar muitos quilómetros deste plástico mais ou menos alvacento.

O desagradável impacto visual das estufas torna difícil pôr as coisas em perspectiva. Sabemos que nós, humanos, somos muitos para o planeta que habitamos, e que a produção dos bens que sustentam o nosso estilo de vida causa feridas difíceis de sarar. O que choca em Almeria é termos à vista o impacto que uma produção desmesurada (mas essencial, pois responde a uma necessidade humana básica) pode ter numa paisagem. Normalmente somos poupados ao conhecimento das condições de produção dos bens que consumimos: são coisas feitas na China, ou no vale do Ave, ou na Marinha Grande, em lugares que não temos qualquer interesse em visitar. Há uma fealdade associada a essa produção que não nos incomoda por estar longe da vista: o que nos importa é que a cidade onde moramos seja bonita, asseada e respirável.

De resto, que as áreas de produção agrícola sejam muito mais extensas do que as áreas urbanas é da ordem natural das coisas. O que acontece em Almeria é que o modelo agrícola seguido (e que é, aparentemente, o único viável naquele território) cria uma paisagem inóspita, muito ao avesso da imagem romântica que os bucólicos urbanos têm do campo e da agricultura. Na verdade, nem os cultivos esteticamente aprazíveis estão isentos de impactos sérios no ambiente (pensemos nos campos de girassóis em Espanha ou nos campos de lavanda em França), nem o cultivo em estufa é necessariamente pior do que o cultivo ao ar livre. Contudo, cria um problema sério, que é o de lidar com o envelhecimento dos plásticos que cobrem as estufas: esvoaçantes farrapos de plástico vêem-se por todo o lado em Almeria.

Centaurea involucrata Desf.


O que sobra de natureza no meio desta inundação de plástico branco? Muita coisa, bem mais do que seria de esperar numa região intensamente agrícola. Ilustramos esta asserção com três plantas notáveis, de três famílias distintas, que integram a riquíssima flora de Almeria.

Começamos com uma asterácea pertencente ao populoso género Centaurea, que conta com quase 100 espécies na Península Ibérica e reúne plantas semelhantes aos cardos mas, por regra, com folhas não espinhosas. Trata-se da Centaurea involucrata, uma planta anual de porte baixo que pode formar moitas consideráveis, e que se destaca pelos capítulos grandes, amarelos e vistosos, resguardados antes de se abrirem por uma perfeita armadura esférica de brácteas. É uma planta sobretudo norte-africana (Marrocos e Argélia) que tem em Almeria o seu único contingente europeu. Encontrámo-la em terrenos ruderalizados bem no centro do mar de estufas.

Antirrhinum mollissimum Rothm.


Almeria é especialmente rica em bocas-de-lobo ou dragoncillos. Já aqui trouxemos o Antirrhinum charidemi, endémico do Cabo de Gata, e mostramos agora o Antirrhinum mollissimum, outro endemismo almeriense, este agradavelmente felpudo, frequente em paredes urbanas, taludes de estrada, e muros próximos das estufas. Também surge, há que dizê-lo, em escarpas e barrancos, mas gosta de ter gente na vizinhança e parece especialmente vocacionado para espaços alterados.

Genista umbellata (L'Hér.) Poir.


A Genista umbellata é outra heroína das estradas em redor de Almeria. Pela forma almofadada e pela disposição das flores em umbelas sésseis nas extremidades dos ramos, essa giesta faz lembrar a caldoneira (Echinospartum ibericum), um arbusto espinhoso e de ramos rígidos característico dos afloramentos graníticos da serra da Estrela e de outras serras portuguesas. Contudo, basta pormos-lhe a mão para que a confusão se desfaça: a planta almeriense (que, na verdade, está presente em quase todo o sul de Espanha) tem ramos flexíveis e nada pungentes, e qualquer herbívoro a pode trincar sem risco de ferir a língua.

18/06/2025

África aqui tão perto



O sudeste da Península é a região com maior quantidade de endemismos e maior variedade de habitats da Europa. Para isso muito contribui uma orografia invulgar, com várias serras próximas da costa, bafejadas por ventos marítimos e com um clima ameno. A serra Nevada, que em Abril ainda exibe os cumes cobertos de neve, ilustra bem a biodiversidade notável desta região. Em conjunto, porém, essas montanhas isolam alguns locais das correntes húmidas do mar Mediterrâneo. Aí a chuva é muito escassa e registam-se temperaturas elevadas durante todo o ano. O processo é conhecido: o vento vindo do mar, carregado de humidade, sobe a montanha, larga no topo a água que transporta e, ao descer, está reduzido a ar muito quente e seco. Estão assim reunidas as condições para se instalar a aridez e o solo ralo, onde a vegetação mais tenaz é herbácea. Parece ser esta a origem do deserto de Tabernas, na província de Almería: uma vasta extensão de margas e arenitos, encaixada entre a Serra de los Filabres, a norte, e a Serra Alhamilla, a sueste. Visitámos este deserto em Abril, depois de duas semanas em que se registou alguma precipitação em Almería. Com sorte, pensámos, poderíamos vê-lo florido.

E, sim, encontrámos uma paisagem extraordinária, recheada de endemismos, alguns de óbvia ascendência africana, outros que são versões, adaptadas à secura e salinidade, de espécies comuns noutras paragens.

Linaria nigricans Lange


Esta Linaria é uma herbácea anual que não ultrapassa os 20cm de altura, de corola branca, por vezes levemente riscada de violeta, e esporão longo. Tem semelhanças, mas também diferenças morfológicas importantes, com a nossa Linaria elegans. É um endemismo raro do sudeste de Espanha.

Koelpinia linearis Pall.


A Koelpinia linearis é uma asterácea anual com flores de cor amarelo-limão, muitas folhas fininhas e longas, e um fruto de formato bizarro. Aprecia prados semi-desérticos, e a sua distribuição inclui também o Médio Oriente e o norte de África. A única população conhecida na Europa é a do sudeste de Espanha. Curiosamente, no recanto arenoso do deserto de Tabernas onde a vimos acompa­nhavam-na inúmeros pés de Cistanche phelypaea.

Strigosella africana (L.) Botsch. [= Malcolmia africana (L.) W. T. Aiton]


A Strigosella africana é também uma espécie anual, cuja designação oficial na Flora Iberica é Malcolmia africana. O aspecto geral é o de uma planta de porte pequeno (não mais de 40 cm de altura), com folhagem contorcida pela secura e lindas (mas diminutas) flores rosado-violáceas que amadurecem amarelas. Vimo-la no bordo de um caminho argiloso, a enfrentar estoicamente o sol com os talos rígidos ramificados a partir da base e cobertos de pêlos protectores.

06/06/2025

Limónios lilases de La Gomera



Mesmo que não aspire às estrelas do guia Michelin, um restaurante com brio pode, por apenas cinco euros, dar um toque de requinte às suas instalações sanitárias. É esse o preço de venda dos ramalhetes de limónio numa certa cadeia de supermercados — nas floristas ficam algo mais caros, mas talvez sejam de produção biológica. Assenta sempre bem uma jarrinha com limónios ao lado da saboneteira, e igual enfeite pode ser usado nas mesas das refeições se elas forem espaçosas. Nesse caso, porém, o estabelecimento já incorre em despesas significativas de decoração, necessaria­mente reflectidas na factura apresentada ao cliente.

A vantagem dos limónios face a outras flores mais vistosas como lírios ou crisântemos é que se trata de um investimento duradouro. Enquanto que as outras, se não forem artificiais, murcham em poucos dias, os limónios permanecem viçosos semanas a fio. Como é que eles conseguem? Na verdade, as flores propriamente ditas são de curta duração, e são os cálices multicoloridos (azuis, roxos, amarelos, brancos), feitos de uma matéria membranosa que parece imperecível, a dar vivacidade ao arranjo.

Em Portugal não somos mal servidos de limónios: contam-se 14 espécies no continente e mais três nas ilhas. Antes que os donos dos restaurantes se organizem para colherem às mãos-cheias inflorescências de plantas silvestres e assim pouparem uns euros, há que ressalvar que os nossos limónios não são apropriados para enfeites: faltam-lhes os cálices vistosos e, de um modo geral, têm inflorescências discretas. São belos nas falésias com o mar ao fundo (pois vivem todos no litoral), mas deixam de o ser quando arrancados e metidos numa jarra.

Com algumas excepções importantes, da mesma pecha sofrem, para bem da sua sobrevivência, a quase totalidade dos limónios ibéricos. Nas Canárias, onde se contam umas vinte espécies, a situação é diferente. Muitos dos limónios canarinos são plantas grandes, com inflorescências muito desenvolvidas, em que o azul ou lilás dos cálices contrastam com o branco das corolas. A sua valia ornamental é evidente, mas quase todos são raros, e a sua colheita (proibida por lei) seria um acto de depredação. Ao contrário do que sucede em paragens continentais, não têm preferência marcada pela beira-mar, vivendo a maioria deles no interior das ilhas, em altitudes muito variáveis que podem alcançar os 1000 metros.

Limonium brassicifolium (Webb & Berthel.) Kuntze


Neste fascículo mostramos dois dos quatro limónios endémicos de La Gomera. Qualquer deles é muito escasso na ilha, e os dois que ficam por mostrar são ainda mais raros. O L. brassicifolium (ilustrado em cima), que encontrámos num par de locais nas imediações do Roque Cano, é uma planta baixa, de não mais que 30 cm de altura, mas de folhas largas — que, como sugere o epíteto específico, são semelhantes às da couve. As inflorescências são amplas, umbeliformes, e as hastes florais são guarnecidas por abas muito largas.

O L. redivivum (ilustrado em baixo), que está restrito a taludes e escarpas da zona central de La Gomera, é bem mais elegante do que o seu conterrâneo, florindo tal como ele de Março a Maio. As suas hastes florais, também elas bastamente aladas, são altas e regularmente ramificadas, atingindo o conjunto cerca de um metro de altura; as folhas são exclusivamente basais, murchando durante a floração. Parece ser prato apetitoso para as cabras assilvestradas que têm vindo a depauperar a flora da ilha: encontrámo-lo com abundância numa ladeira pedregosa protegida por arame farpado, mas do lado de cá da cerca nem um só exemplar sobrara para amostra.

Limonium redivivum (Svent.) G. Kunkel & Sunding

26/05/2025

Cabo de Gata



O Cabo de Gata, que na antiguidade clássica se chamava Promontório Charidemi, é uma ponta de terra de origem vulcânica no extremo sudeste da Península Ibérica, província de Almería, mesmo em frente ao mar Mediterrâneo. O clima é árido, quase desértico, com invernos amenos e temperaturas que podem ser tão elevadas no Verão que, em alguns dias, não é ali permitida a presença de gente. No Parque Natural do Cabo de Gata, no município de Níjar, que abriga o Cabo e serras vizinhas, os habitats são tão variados que não é surpresa que contenha uma vegetação excepcional, com muitas espécies exclusivas, resultado da adaptação à secura, ao solo salgado e resvaladiço, à costa escarpada, ao vento forte e à maresia. Próximo deste local está o único deserto na Europa (o deserto de Tabernas), que se transforma num tapete de flores quando cai alguma chuva. O resto é mar, enseadas e praias extensas de areia fininha. Aqui lhe mostramos fotos de três dos muitos endemismos do Cabo de Gata, todos com o epíteto específico charidemi a sublinhar o carácter único da flora deste lugar.

Antirrhinum charidemi Lange, dragoncillo del Cabo


Dianthus charidemi Pau, clavelina del Cabo


Teucrium charidemi Sandwith, poleo del Cabo


Este promontório é um canto remoto cheio de vento, com poucos e maus acessos, onde a circulação automóvel não é autorizada. Tudo isto desencoraja, felizmente, o turismo de maior impacto no ambiente. Quase sem população residente, não atraíu os grandes empreendimentos turísticos que são comuns na costa espanhola do Mediterrâneo, e isso tem protegido a sua biodiversidade. Ainda assim, a flora desta reserva da biosfera (terrestre e marinha) da Unesco não está livre de uma séria ameaça: vivem lá demasiadas cabrinhas, para quem não há falésias nem penhascos inacessíveis, e que não sabem que as plantas que devoram são endemismos raros.

Dizem algumas fontes credíveis que o nome do promontório não alude a felinos, mas à abundância de ágatas, cuja extracção terá sido desenfreada noutros tempos. Por contracção fonética, o nome encolheu e alindou-se.