Morte na neve
Não costumamos pensar em morte quando comemos; mas aquilo que levamos à boca, se fosse dotado de consciência, não pensaria noutra coisa. Mesmo um carnívoro militante, quando tem no prato um pedaço de carne com o mesmo cheiro do animal vivo (coisa que é frequente com borrego ou cabrito), pode sentir que lhe fraqueja o apetite. Em todo o caso, a nossa espécie registou grandes avanços em dissociar a morte da alimentação. Os frangos e os bifes envoltos em celofane não têm nas embalagens qualquer alusão à existência de matadouros ou ao modo como esses animais foram mortos e retalhados. Nos programas televisivos de vida selvagem, as refeições dos grandes predadores fascinam-nos e arrepiam-nos pela violência e pelo sangue — em suma, pelo carácter animalesco que está totalmente ausente dos nossos civilizados repastos.
As plantas carnívoras não nos causam arrepios, talvez por sermos incapazes de nos imaginar no lugar dos insectos de que se alimentam, mas justifica-se mais o fascínio por elas do que por leões ou outros bichos sanguinários. Cumpre às plantas levarem uma existência vegetativa: não têm vontade, muito menos consciência. Como pode uma planta adoptar um comportamento tipicamente animal, matando para comer? Claro que, sendo planta, está limitada nos seus movimentos, de modo que esse acto de comer não envolve mastigação vigorosa. O que uma planta insectívora do género Pinguicula faz, depois de aprisionar os insectos na mucilagem que envolve as folhas, é segregar uma substância viscosa que contém enzimas digestivos; e, depois de completada a digestão na superfície da folha, absorver o líquido nutritivo daí resultante.
Para não repetirmos lições anteriores, pode o leitor reler o que antes escrevemos sobre as duas espécies de Pinguicula presentes em Portugal — P. lusitanica e P. vulgaris — e ainda sobre a P. grandiflora, que avistámos na Cantábria. A Pinguicula nevadensis, que ilustra o texto de hoje, segue o mesmo figurino das espécies antes apresentadas, e de facto é muito semelhante à P. vulgaris, distinguindo-se dela pelas folhas quase tão largas quanto compridas, e pela forma e coloração mais pálida das flores. Contudo, enquanto que a P. vulgaris tem uma distribuição circum-boreal (América do Norte, Europa e Ásia) ou até um pouco mais vasta (está também presente na cordilheira do Atlas, em Marrocos), a P. nevadensis está confinada a uns poucos quilómetros quadrados na metade oeste da serra Nevada, na província de Granada, onde aparece em prados húmidos e margens de riachos acima dos 2000 metros de altitude.
A P. nevadensis mostra bem que ter uma área de distribuição restrita não implica raridade, pois a planta é abundante e fácil de encontrar, nos cumes da serra Nevada, no habitat que lhe é próprio. A sua floração é estival, decorrendo entre Julho e Agosto. É nessa altura que os prados se enchem de insectos, e ela não se faz rogada em aproveitar tão generoso maná.