08/11/2024

Enleios do sul

De há uns dois anos para cá, tornou-se hábito os jardins do Porto estarem vedados ao público. Seja porque as obras do Metro ocupam esses espaços, destruindo-os total ou parcialmente, seja porque a Câmara decide lançar obras de «requalificação», o resultado é que, durante meses a fio, quase todos os jardins da cidade têm estado inacessíveis a quem busca uma sombra ou um lugar para descanso. O jardim de Sophia foi convertido numa imensa cratera e perdeu todas as árvores — não tem salvação possível. Do jardim do Carregal, que à partida já era diminuto, só resta metade, e essa metade permanece interdita aos transeuntes. Os jardins da Cordoaria e da praça da República estão fechados para «requalificação» por um período que se adivinha prolongado. Também o jardim da Arca d'Água esteve fechado uns meses pelo mesmo motivo, mas entretanto já reabriu; a intervenção a que foi sujeito, puramente cosmética, centrou-se na impermeabilização dos caminhos e na renovação de bancos e candeeiros, abdicando de mexer no coberto vegetal. Para completar a lista, também o jardim da rotunda da Boavista foi parcialmente sequestrado pela Metro do Porto. Amputada de três ou quatro grandes árvores, a parte afectada acabou por reabrir, mas os responsáveis pelas obras já fizeram saber que querem lá voltar em breve. De facto, o grau de destruição alcançado nessa primeira etapa está longe de fazer jus aos pergaminhos da empresa.

Que, numa cidade em que os jardins são escassos, os diferentes responsáveis se conjuguem para tolher, praticamente em simultâneo, o usufruto público de quase todos eles é prova irrefutável do escasso apreço pela verdura nas urbes portuguesas. Sentarmo-nos num banco de jardim é uma actividade improdutiva, uma perda de tempo sem qualquer benefício económico para a sociedade, um exemplo acabado de imobilidade insustentável. Quem, na cidade, quiser sentar-se ao ar livre deve escolher uma esplanada e pagar o que for devido.

Além de desvalorizados como lugares de repouso ou relaxamento, os jardins públicos portuenses (ou, mais geralmente, portugueses) são pobres no colorido das flores e na variedade das plantas que acolhem. Valem apenas pelas árvores, e neles nunca se vêem as plantas sazonais (narcisos, açafrões, lírios, cilas, alhos-silvestres, etc.) que dão cor aos nossos montes. Num país sem jardinagem pública, ficam os jardins condenados ao verde inexpressivo dos relvados. Não é nesses bisonhos «espaços verdes», de que foi banida toda a diversidade vegetal, que aprendemos a contemplar e a reconhecer as plantas. Até aquelas que alcançaram grande popularidade no mundo da jardinagem, e que se encontram em jardins medianamente cuidados de qualquer cidade europeia (não portuguesa), acabam por se nos tornar desconhecidas. Exemplo disso são as trepadeiras do género Clematis (em português, clemátis ou clematites). Quando foi a última vez que as vimos num jardim público no nosso país?

Clematis flammula L.


São às centenas as espécies e variedades de clemátis domesticadas para jardinagem e que estamos privados de admirar. Contudo, se passearmos nos espaços naturais do país, encontramos várias espécies de clemátis espontâneas e, havendo sorte, até topamos com elas em flor. Das quatro que são nativas em Portugal, duas delas, Clematis vitalba e Clematis campaniflora, aparecem sobretudo no norte e no centro; as outras duas, Clematis cirrhosa e Clematis flammula (ilustrada nas fotos), estão praticamente restritas ao Algarve. A C. cirrhosa floresce no Inverno, enquanto que as restantes o fazem desde o final da Primavera até meados do Verão.

Tal como as suas congéneres, a Clematis flammula é uma trepadeira vigorosa, enleando-se nas árvores e arbustos que compõem os matos mediterrânicos onde tem o seu habitat de eleição. As folhas são compostas, duas a três vezes pinatissectas, e as flores brancas têm cerca de 3 cm de diâmetro. A sua distribuição é circum-mediterrânica, abrangendo todo o sul da Europa e norte de África. Em Portugal, além de ser espontânea no Algarve, está naturalizada em algumas ilhas dos Açores. Já a vimos no Algarve, mas numa época em que a floração ainda tardaria meses. As fotos que acompanham o texto foram tiradas na vertente sul da serra Nevada, onde, no início de Julho, a abundante produção de flores torna a planta muito visível nas bermas das estradas.

25/10/2024

Pica mas não morde

Ptilostemon hispanicus (Lam.) Greuter


Para os masoquistas que gostam de se picar com moderação, sem espaventosos derramamentos de sangue, os cardos são a escolha acertada: os picos não são dos mais rígidos nem aguçados e, ao contrário das silvas e dos tojos, os cardos raramente formam maciços densos, de modo que só nos roçamos neles por opção consciente. Além disso, há-os muito diversos e com variados graus de pungência, desde os que provocam apenas ligeiras comichões até aos que, adequadamente pressionados, são capazes de nos abrir uns furinhos nas pontas dos dedos. O estranho hábito que a espécie humana tem de se cobrir de roupa dos pés à cabeça não nos permite facilmente usufruir da plenitude das sensações que o contacto da pele nua com os espinhos nos proporcionaria. Daí haver cardos que se especializaram em comprazer outros animais, como o cardo-burriqueiro (Onopordum acanthium) e o cardo-dos-cachorros que hoje vos apresentamos. A planta, na verdade, só existe no sul de Espanha, e por isso não é conhecida dos cães portugueses, mas o nome castelhano (cardo perruno) é inequívoco.

A afinidade da planta com os canídeos não é reflectida no seu nome científico, Ptilostemon hispanicus. Traduzido à letra, Ptilostemon significa “estames plumosos”, mas só dissecando a flor e observando-a à lupa é que é possível confirmar essa característica distintiva. Fortemente aparentado com o vulgaríssimo cardo-dos-picos (Galactites tomentosus), o cardo-dos-cachorros é o único represen­tante peninsular de um género que compreende catorze espécies, todas endémicas da região mediterrânica, entre elas a marroquina Ptilostemon dyricola. Capaz de atingir um metro de altura, com hastes erectas encimadas por três ou quatro capítulos vistosos, cada um dos quais com uns 4 cm de diâmetro, o Ptilostemon hispanicus é bem mais elegante do que o seu congénere norte-africano. E os longos espinhos amarelos que lhe guarnecem as folhas não só reforçam o efeito ornamental como desencorajam os herbívoros de lhe ferrarem o dente.

Florindo entre Junho e Agosto, o Ptilostemon hispanicus vive em matos secos e em zonas pedregosas e soalheiras, sempre sobre substratos calcários. Está presente em sete das oito províncias da Andaluzia (a excepção é Huelva) e também em Jaén, Albacete e Murcia. Foi na serra de Huétor, em Granada, que o fotografámos no inicio de um mês de Julho, viçoso e imune à canícula debilitante que se fazia sentir.

12/10/2024

Arenária amorosa & arenária picante



Há plantas tão coladas ao chão que dir-se-iam feitas para serem pisadas. Por vezes o pisoteio é inerente à sua forma de vida, pois o trânsito de pessoas ou de gado nitrifica o solo e torna-o mais acolhedor para plantas com tendências ruderais. Outras vezes o pisoteio é uma contingência inesperada que em nada beneficia as plantas: elas são rasteiras por adaptação ao habitat agreste, em lugares onde a presença humana ou de animais de grande porte era residual ou inexistente. O turismo de montanha, o pastoreio que ascende a altitudes cada vez mais elevadas, os bandos de cabras assilvestradas — tudo isso são factores que vieram perturbar existências vegetais até então tranquilas.

Arenaria tetraquetra subsp. amabilis (Bory) H. Lindb.


Noutras eras, subir ao topo da serra Nevada, a 3400 metros de altitude, era um feito demorado que exigia preparação e cautela, e que só aventureiros ou estudiosos tinham razões para tentar. Hoje em dia, são muitos os que sobem ao cume confortavelmente sentados em cabines de teleférico, e tão ávido amor pela natureza é quase sempre prejudicial ao objecto amado. Entre as plantas que se arriscam a serem calcadas sem terem recebido formação para tal destaca-se uma cariofilácea de flores brancas — uma arenária que, usando as armas da sedução para se defender, se declara amorosa. É isso que nos diz a palavra latina amabilis, sendo Arenaria tetraquetra subsp. amabilis o nome completo dessa planta que forma extensos tapetes verdes nas zonas mais elevadas da serra. Na verdade, quando em meados de Julho chegam as hordas de visitantes estivais já os tapetes mudaram para branco, pois a floração é tão abundante e cerrada que nem deixa ver as folhas. Porque ficam mais visíveis e não é de bom tom sujá-los, é provável que os tapetes brancos sejam menos castigados pelos pés dos caminhantes distraídos.

A Arenaria tetraquetra só não é endemismo espanhol porque surge também na vertente francesa dos Pirenéus. No entanto, as plantas pirenaicas, pertencentes à subespécie tetraqueta, são distintas das nevadenses por terem flores de quatro pétalas (veja aqui), e de facto a subespécie amabilis, adaptada a substratos siliciosos, é exclusiva da serra Nevada. Há ainda a subespécie murcica, que vive em algumas serras calcárias do sul de Espanha. Características comuns às três subespécies são a preferência por solos pedregosos, o porte rasteiro, e as minúsculas folhas triangulares, densamente imbricadas.

Arenaria pungens Clemente ex Lag.


Porque o género Arenaria é rico em espécies e subespécies (contam-se umas cinquenta só na Península Ibérica), pudemos sem dificuldade convocar uma outra arenária, também fotografada na serra Nevada, que mostra grande contraste com a primeira. A Arenaria pungens, ou arenária-picante, é um arbusto de uns 30 cm de altura que forma moitas arredondadas, defendidas dos ataques dos herbívoros pelas folhas rígidas e pontiagudas. Restrita a zonas de montanha a altitudes superiores a 1600 metros, não é exclusiva da serra Nevada: ocorre também na vizinha serra de Baza e na cordilheira do Atlas, em Marrocos.

30/09/2024

Marroios & balotas



No sul de Espanha, entre Granada e Almeria, a serra Nevada é uma muralha rochosa de cem quilómetros de comprimento que corre paralelamente à costa; a sua altitude é quase sempre superior aos 2000 metros, e em certos trechos supera largamente os 3000. Seja pelo norte ou pelo sul, as estradas são forçadas a contornar o obstáculo formidável, e há apenas uma que faz a ligação entre as duas vertentes da serra. A 2040 de altitude, o Puerto de La Ragua, onde outrora funcionou uma estação de esqui tornada inviável pela escassez da neve, é o ponto mais elevado dessa travessia rodoviária. Os pinheiros em plantação cerrada dos dois lados da estrada não prometem descobertas botânicas entusiasmantes, mas há também, pelas encostas acima, vastos descampados por onde meandram riachos que, mais abaixo, engrossam até se converterem em ribeiras. Entre o degelo e a estiagem, são três ou quatro meses para as herbáceas cumprirem o seu ciclo anual. Chegámos tarde, num mês de Julho de calor sufocante, e pouco vimos que valha a pena ser contado. Havia roseiras silvestres que formavam maciços vistosos, com um profusão de flores variando entre o branco e o rosa carregado; e, junto a uma das linhas de água, vegetava uma lamiácea de folhas lanudas e arredondadas que exibia ainda algumas flores frescas.

Marrubium supinum L.


Ainda que a floração fosse arroxeada em vez de branca, o formato das folhas e a disposição das flores em verticilos largamente espaçados lembravam irresistivelmente o marroio-branco (Marrubium vulgare), planta todo-o-terreno presente de norte a sul do nosso país mas mais frequente no interior. A planta da serra Nevada pertence ao mesmo género botânico e é por isso apropriado que também lhe chamemos marroio. O seu nome científico, Marrubium supinum, sugere um hábito rasteiro, o que é em parte desmentido pelas hastes florais erectas. Tal como a sua congénere, tem apetências ruderais e não exige habitats de primeira qualidade, podendo medrar em terrenos baldios e bermas de caminhos. Essa adaptabilidade não lhe garante, contudo, uma distribuição vasta: no nosso continente, fica-se pela metade oriental da Península Ibérica, e a sua presença em Marrocos, Algéria e Tunísia, únicos países africanos onde está assinalada, é bastante residual.



Não foi esse o único marroio que vimos nessa semana em que excursionámos por terras andaluzas. Num dos dias deslocámo-nos à costa e, já em Málaga, visitámos a praia de las Alberquillas — que só vimos ao longe, antes de o calor nos fazer demandar paragens mais frescas. A canícula parecia incompatível com qualquer forma de vida, e todas as plantas estavam reduzidas a palha seca. Todas? Não exactamente. Havia, sob o sol assassino, um marroio (ou o que nos pareceu ser tal coisa) com folhas verdes e viçosas que floria despreocupadamente. A inflorescência mais compacta já levantava suspeitas, e verificámos depois que não se tratava de um Marrubium, mas sim de uma Ballota. O seu nome completo, Ballota hirsuta, permite-nos deduzir ser ela parente próxima do marroio-negro, que é como se chama em Portugal a Ballota nigra.

Ballota hirsuta Benth.


Como todos os marroios, a Ballota hirsuta é uma planta ruderal que prefere lugares nitrificados, e as perturbações ocasionadas pela presença humana só a favorecem. A sua área de distribuição também se restringe à Península Ibérica e ao norte de Áfrcia — mas, ao contrário do Marrubium supinum, a Ballota hirsuta ocorre no nosso país, sobretudo no sul, e não é rara nos países magrebinos.

23/09/2024

Genciana fina



Hoje mostramo-vos uma herbácea anual, com não mais do que um palmo de altura, que é quase só flor. Frequente nas regiões mais frias do hemisfério norte, ocorre na serra Nevada em prados de montanha ou rochedos húmidos acima dos 2000 metros de altityde. Da roseta de folhas basais, diminutas mas pecioladas, nascem talos erectos no topo de cada um dos quais surge, entre Julho e Agosto, uma só flor. E o que se nota desde logo é quão longe ficam as flores da base de folhas, como se quisessem evitar a humidade do solo depois do degelo, e esticassem o pescoço para não passarem despercebidas.

Comastoma tenellum (Rottb.) Toyok.


E, abrindo bem os olhos porque há que focar algo muito pequenino rodeado por vegetação rasteira densa, o que vemos? Flores de construção simples, tubulares e muito bem agasalhadas por um casaco de sépalas longas e resistentes. O cálice da flor está recortado no topo em 4 lóbulos azulados, quase roxos, que fazem lembrar as gencianas mas são desiguais (2 deles ligeiramente maiores). E, na base dos lóbulos, a tapar a garganta do cálice, uma cúpula de fímbrias brancas, abaixo da qual se situam protegidos os estames e o estigma da flor. É como um tapete à porta de casa, onde os polinizadores têm de limpar bem as patinhas antes de entrar para aceder aos 8 nectários disponíveis. É a essa crina que o nome do género alude, e que revemos em espécies alpinas ou pirenaicas que habitam habitats turfosos. O epíteto tenella indica que as plantas desta espécie são de pequeno porte.

Talvez noutras eras, quando a serra da Estrela tinha neve todo o ano e em abundância, esta planta também ocorresse por cá. Agora, a sua distribuição ibérica reduz-se aos Pirenéus e à serra Nevada. Ocorre noutras paragens frias da Europa, América do Norte, Ásia e Marrocos.

12/09/2024

O veneno não mora aqui



As umbelíferas são plantas fáceis de reconhecer pelas umbelas floridas, que lembram guarda-chuvas, e pelas folhas miudamente recortadas, de formato mais ou menos triangular. Represen­tantes típicos da família, muitos usados em culinária, são a salsa, a cenoura e o funcho. Para que não se pense que todas estas plantas existem para nos gratificar o apetite, cumpre deixar o aviso de que muitas delas (e até algumas que se parecem superficialmente com a cenoura, como o embude e a cicuta) são mortalmente venenosas, pelo que a colheita de umbelíferas silvestres para fins culinários é totalmente desaconselhada.

Hoje falamos de duas umbelíferas que destoam vincadamente da família a que pertencem. Uma delas, Bupleurum fruticosum, recebeu em castelhano o nome de matabueyes, sugerindo que a sua ingestão é perigosa para o gado bovino. Ora essa acusação é de todo infundada, pois as plantas do género Bupleurum nada têm de tóxico e de algumas delas até se confeccionam medicamentos — que, como sucede com todos os fármacos, devem ser usados na dose indicada e tomando nota das contra-indicações. Contudo, não são conhecidos casos em que o consumo directo da planta (não das essências dela extraídas) provoque efeitos graves.

Bupleurum fruticosum L.


Não é na forma e disposição das flores, geralmente amarelas, que os bupleuros divergem das restantes umbelíferas. As folhas é que são novidade: em vez de divididas, são simples, lanceoladas e de margens inteiras; quase sempre apresentam uma venação longitudinal bem visível, mas por vezes, como no caso do B. fruticosum, a venação é reticulada. O porte destas plantas é muito variável: tanto o B. fruticosum (em cima) como o B. spinosum (em baixo) são arbustos, o primeiro de altura respeitável (pode superar os dois metros) e o segundo rasteiro (não excede os 40 cm), mas a maioria das espécies do populoso género Bupleurum — que abrange umas 150 espécies, todas menos uma no hemisfério norte — são herbáceas anuais ou perenes.

Bupleurum spinosum Gouan
[= Bupleurum fruticescens subsp. spinosum (Gouan) O. Bolòs & Vigo]


Entre os bupleuros há endemismos de distribuição restrita, como este português que há mais de vinte anos aguarda reconhecimento taxonómico. Em contraste, o Bupleurum fruticosum tem uma distribuição ampla dos dois lados da bacia mediterrânica, de Portugal até à Grécia, e de Marrocos até à Tunísia. Apesar de por duas ocasiões o termos visto no Algarve, onde é bastante comum, só em Granada o pudemos observar em flor. Menos viajado do que o seu congénere, o B. spinosum, que também fotografámos em Granada, consegue ainda assim fazer a ponte entre dois continentes, ocorrendo no sul de Espanha e no norte de África. É uma planta arbustiva que com a idade ganha o aspecto de uma almofada espinhosa, perfeitamente adaptada às condições áridas do seu habitat. Os espinhos, por sinal bem rígidos e aguçados, são na verdade as hastes secas das umbelas após a frutificação.

05/09/2024

Sem medo das alturas



No instante em que se inventou a fotografia, não foram só a ciência, a tecnologia, a arte e a nossa memória que se agigantaram. O mundo deixou de ser sempre a cores. E decerto muitos começaram a sonhar a preto e branco. Durante cerca de quatro décadas, a fotografia guardou apenas contrastes em imagens sem profundidade, incapaz de memorizar a realidade na íntegra. Nas fotos mais antigas, as famílias amontoadas como migalhas de pão parecem-nos irreais de tão imóveis e tão sem volume. Apesar do entusiasmo da novidade, continuava a ser mais fácil descrever um rouxinol por palavras, ou fantasiado numa tela de pintura, do que registá-lo em voo com uma máquina fotográfica. Tudo mudou anos depois, e o cinema deu a estocada final no descrédito. E, no entanto, a tendência de hoje é outra. A realidade tem agora pouco interesse, e o acto outrora breve de fotografar ganhou uma nova função: aprimorar o mundo, mentindo se necessário, evitando-se a mera cópia do que existe ou acontece. A edição da fotografia, por vezes eliminando as cores, com fins artísticos ou para aperfeiçoar a verdade, tem criado um mundo alternativo que, no entender de muitos, substitui com vantagem o real. E ainda há quem estranhe que o universo esteja em expansão.

Viola crassiuscula Bory


Se às fotos destas violetas endémicas da serra Nevada fossem retiradas as cores, não saberíamos de que espécie se tratava. Poderiam ser exemplares de Viola langeana, que ocorre nas serras da Estrela, Malcata e Homem de Pedra, e cujas flores são integralmente amarelas; ou da Viola diversifolia, dos Pirenéus, com flores inteiramente roxas. As flores da V. crassiuscula, em numerosos talos, combinam o violeta, o rosa e o branco, e cada planta não excede os 15 cm de altura. Vive adaptada a solos soltos acima dos 2000 metros de altitude, em fissuras de rochas e cascalheiras, com a raiz bem enterrada para que um deslize de pedras ou uma ventania forte não a condenem. É uma espécie rara, listada no livro vermelho da flora da Andaluzia.