O nascer do sol
«A casa em que nasci, Marianinha,
está voltada a Su-sueste
e tem à frente um cipreste
de atalaia à seara e vinha.
(...)
Manhã cedo, rompe a cantata,
nas árvores de fruto e pela mata.
- Sol, Sol !- trauteiam os pardais,
tordas, melros e verdiais.
- Sol, Sol!- pede o tuinho na balsa
e o auricu que apagou o candil na salsa.
E o Sol ergue-se por detrás dos montes,
e lá vem, sem olhar a vias nem pontes,
triunfal, contente como um ás,
com sua capa de arcebispo primaz.
Quem não ouve decerto sente
que vem salvando: --- Olá, boa gente,
pássaros a voar e no ninho
fonte, e tu a ladrar, cãozinho,
para que abram e nos deixem entrar.
Olá, meu amigo carvalho,
à minha espera no festo da colina,
e, no almarge, o carneiro do chocalho,
o cabrito, a cabrinha e até o chibo,
ronda-vos o lobo, mas sopro a neblina,
e vai mais longe buscar o cibo.
Salve, amigos, haja fartura e alegria!
Rompe logo um coro em tom maior:
---Viva lá o magnífico senhor
Bem haja quem nos traz tão bom dia!-
soltam pintassilgo, pisco, cotovia,
no seu voo alto corvo e açor,
na horta chasco, pisco e tralhão,
pelos restolhais o perdigão,
no pinhal rola e cavalinho,
e associa-se o mágico do cuquinho,
cu-cu, cu-cu, cu-cu, cu-cu.
O mundo fica doirado como um pagode,
despem árvores e arbustos
os véus de noite mal justos,
e não soam mais de frios queixais.
(...)»
Aquilino Ribeiro in O livro de Marianinha (1967)
Bertrand Editora, Lisboa, 1993 (2ª edição)
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