10/03/2005

Ramada Alta

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Foto mdlramos: 0402

Pode ler-se num jornal da cidade que, no âmbito do processo de acompanhamento do estado sanitário do arvoredo, a Câmara do Porto decidiu abater um dos liquidâmbares localizados na Praça Coronel Pacheco e uma tília de grande porte, no Largo da Ramada Alta. Estas árvores, parte da memória da cidade, deveriam ser alvo de medidas que lhes melhorassem a saúde e evitassem a solução drástica do abate. Ficamos aturdidos com um tal desbarato do nosso património.

Sobre a tília, e o Largo da Ramada Alta, escreveu João de Araújo Correia em Pó levantado (1970):

Sempre que passo à Ramada Alta, nas minhas idas ao Porto, fico encantado com aquele recanto de província, miraculosamente conciliado com a passagem de tanto automóvel. Digo entre mim: qualquer dia, desaparecem a capela e aquelas duas árvores, aquelas duas tílias que lhe fazem sentinela. O largo, que ainda se chama largo e que até se chama da Ramada Alta, nome antigo, de arredor de cidade, morrerá ou se crismará em praceta, sem capela e sem árvores ou só com dois palitos, floridos de cimento, como homenagem à natureza extinta. É preciso que a Ramada Alta mude de nome, que não cante ali nenhum pássaro, nem ali se fabrique, em folha natural, o velho oxigénio, um anacronismo, e que o ar se polua e engrosse com as emanações de tanto automóvel. Só assim o larguinho, com o nome de praceta, merecerá o bilhete oficial, que o acredite como coisa citadina. (...)

Sempre que passo à Ramada Alta, fico encantado com aquele pedaço de coisa antiga ainda viva e até com o seu ar de vivedoira. (...) Começa hoje a pensar-se, lá fora, que o melhor processo de fixar boa gente, nas cidades, é não as desfigurar. Se o mau urbanismo as desfigura, substituindo por monstruosidades as coisas graciosas, o morador que trabalha foge para o campo. Se lhe falta ar respirável, ar de família, emanado de alguma coisa velha, com sua tradição, deserta. Entrega a cidade ao banditismo, que se apodera de bairros construídos, de um dia para o outro, por arquitectos sem alma.

O Porto, que vai sacrificando a um progresso mal compreendido os seus velhos palácios, que arranca árvores por dá cá aquela palha progressista, vai perdendo, de ano para ano, o ar tripeiro. Começou a perdê-lo com a destruição do convento da
Avé Maria, o prolongamento da Praça da Liberdade e o suplício do palácio de Cristal. Substituiu-o por horroroso sapo-concho. A população do Porto aumentou muito nos últimos anos. Mas, se o Porto se envergonhar da fisionomia tripeira, verá o que lhe pode acontecer. Obrigará à deserção os que se não contentam com o funcional. (...)

O Largo da Ramada Alta, se não morrer (...), será um elo capaz de prender ao Porto uma ou duas almas incompatíveis com o banditismo.

8 comentários :

Anónimo disse...

Nasci por alí, algumas centenas de metros abaixo em Barão de Forrester, e por infortúnio passava por lá quando procediam exactamente ao seu abate; com ela morre mais um pouco do meu passado e das minhas memórias; espero apenas que, como já há em tempos foi "ventilado", o próximo passo não seja a demolição da Capelinha que ficou agora tão descaracterizada...

Anónimo disse...

Mais uma vez a política arboricida de Rui Sá aparece protegida por um escudo invisível topo de gama. Pareceres? Há os para tudo. Até para o abate de 100 tílias, 243 choupos e 95 ligustros na Boavista. Cada Frank Ghery o seu paladar.

Anónimo disse...

É triste viver num país assim! http://ecosfera.publico.pt/noticias2003/noticia3984.asp

Anónimo disse...

É realmente triste ver que se não investe em medidas para melhorar a saúde das árvores, preferindo o seu abate sistemático, reflexo do nosso país onde a própria medicina está também ferida na sua humanidade...Passo a pé, muitas vezes, na Ramalda Alta, um sítio quase rural, quase mágico, agora no caminho ainda (até quando?)me acompanham as árvores do Carolina Michaelis...

ManuelaDLRamos disse...

Alexandra: eu também vivi muitos anos em Serpa Pinto e passava pelo Largo diariamente para ir para o "Carolina". Confesso que não me lembro da tília desse tempo, pois nessa altura o meu interesse pelas árvores era comum: apreciava-as como a maioria das pessoas quase que inconscientemente, sem saber o seu nome nem história(s); as folhas eram bonitas no Outono, os frutos e sombra sabiam bem no Verão, etc, etc..
Pode ver-se que já lá está uma arvorezinha plantada e que bem que ela iria ficar sozinha (no entanto creio que planeiam transplantar para lá uma tília em substituição da que foi ontem abatida). Digo Isto porque assim teria espaço para crescer à vontade. O problema com as árvores na cidade tem muito a ver com o modo como são plantadas, sem espaço para se desenvolverem, junto de paredes e nas bermas dos passeios, de modo que depois são impediosamente podadas, ou melhor mutiladas como esta antiga parece ter sido.
É pena não anunciarem localmente o abate e explicarem bem e para cada caso as razões -quando se trata de árvores importantes e que fazem parte intrinseca do local e das lembranças das pessoas- para estas terem tempo de se habituarem à ideia (quando o abate parece mesmo inevitável). Mas se se desse essa importância às árvores então talvez se estudassem as possibilidades de as preservar e salvaguardar, como sugere a Maria.

ManuelaDLRamos disse...

Não sei se o CR confundiu os apelidos pois não creio que o Rui Sá tenha responsabilidade no abate dessas árvores da Av. da Boavista. O vereador do ambiente na nossa cidade está na posição daquele que "é preso por ter cão e preso por o não ter"... A avaliação do estado sanitário das árvores do Porto feito pela UTAD não é um parecer qualquer e foi um estudo pioneiro que era necessário. Agora a viabilização de alternativas ao abate é que em certos casos deveria ser considerada, mas isso seria uma medida civilizacionalmente ;-) mais avançada e mais onerosa, claro.

ManuelaDLRamos disse...

Como estive ontem sem conseguir comentar, hoje desforro-me...)
Relativamente à notícia sobre o abate dos sobreiros mencionada por Micaela, vale a pena ler na página da Quercus o texto completo:
"Governo demissionário viabiliza o abate ilegal de mais de dois mil e quinhentos sobreiros":
http://quercus.sensocomum.pt/pages/defaultArticleViewOne.asp?storyID=1117 . Pelos vistos pode lá ler-se também que o anterior governo socialista tinha feito algo de idêntico.
Devem gostar todos muito de golf... Pois nessa "Herdade da Vargem Fresca" a 50 km de LX já existe um complexo de golf "recentemente inaugurado" (http://www.portugalgolf.pt/campos/costalisboa/ribagolfe_II_apres.htm)
E há ainda a considerar a opinião expressa do presidente da Câmata Munic. de Benavente (CDU) que é absolutamente a favor do empreendimento. Realmente é pena que se possam revogar estas leis feitas justamente para proteger de visõs demasiado curtas...

Anónimo disse...

mdlramos
:)

Concordo que a iniciativa de abate de centenas de árvores na Boavista não foi do vereador do ambiente; no entanto, Rui Sá deu cobertura política ao abate, ao classificar os 243 choupos destruídos como «árvores não nobres» e, no mesmo tempo mediático, ao acenar com o parecer da UTAD - inquestionável, para mim - sobre as árvores do Porto. Parecer que, imagino, nem sequer terá abordado a razia da Boavista. Sei que é assim que se vai fazendo política, mas também é por isso que a credibilidade dos políticos anda tão por baixo.

É com amargura que assisto ao abate das 100 tílias no passeio do Parque da Cidade.
Esperei 13 anos para ver as jovens tílias com as copas verdejantes que tinham no último verão.

Olho à minha volta e observo que todos os motivos são bons para abater uma árvore. Se continuarmos assim, dentro de alguns anos quase não haverá árvores de grande porte, no Porto :(