Do Sul nem boa árvore nem bom pavimento
Syon Vista: uma alameda de azinheiras (Quercus ilex) em Kew Gardens
Quando foram apresentados os projectos da Porto 2001 de má memória, houve um detalhe que logo me arranhou o ouvido: em alguns locais da cidade a "calçada lisboeta" iria ser substituída pelo granito, mais em consonância, dizia-se, com a índole da Invicta. Foi aí, suponho eu, a primeira vez em tempos recentes que os portuenses foram subtilmente alertados para o carácter exótico e suspeito, porque lisboeta, de um tipo de revestimento que ao longo de dois séculos aceitaram como parte natural da fisionomia citadina: até então o nome da coisa era "calçada portuguesa". É irrelevante que ela se encontre em passeios e praças de todo o país, ilhas incluídas, e tenha sido exportada como portuguesa para o Brasil e vários países europeus e africanos: no conceito dos empedernidos cultores do tripeirismo puro, nada redime essa calçada do pecado original de ter nascido em Lisboa. O que é genuinamente nosso é o granito... chinês.
Não é só no pavimento que o tripeiro puro se opõe a importações sulistas. Nos jardins e parques do Porto, e mais geralmente no norte do País, quase não se encontra a azinheira (Quercus ilex), esse nobre e possante carvalho de folha perene tão característico das planícies alentejanas e de toda a bacia mediterrânica. No Porto, as excepções que conheço, todas jovens, são duas árvores num apertado canteiro dos jardins do Palácio de Cristal, e um promissor conjunto nas traseiras do Museu de Serralves. Podia dar-se o caso de o nosso clima, mais frio e húmido, não ser favorável à espécie, mas a minha última visita a Londres foi esclarecedora. Acontece que a azinheira (Holm oak em inglês) é dos carvalhos ornamentais mais valorizados em Inglaterra, onde foi introduzido no século XVI, lá vegetando exemplares de grande porte em muitos parques e jardins. A Syon Vista, na zona oeste dos Kew Gardens, é uma alameda com cerca de 850 metros de extensão, paralela ao lago, constituída maioritariamente por azinheiras. A sucessão das copas redondas, diminuindo com a distância, faz convergir os olhares na grande Palm House que remata o campo de visão com o cintilar branco das suas vidraças. De proporções rigorosamente geométricas, esta obra-prima da arte paisagista é formada por árvores que afinal pertencem à flora portuguesa.
«Flora portuguesa? Ora essa! Sulista!» - resmungaria o tripeiro puro para justificar a recusa da azinheira nos jardins da cidade. O que é genuinamente nosso, a julgar pela sua abundância, é o carvalho... americano.
Jardins da Chiswick House, em Londres: cascata coroada por azinheira; vista do anfiteatro e "templo jónico" de sob a ramagem de duas azinheiras
Fotos: pva 0506
4 comentários :
Muitas vezes me tenho perguntado qual será o critério de escolha das árvores a plantar em locais públicos, e apesar de nunca ter tido uma verdadeira resposta, percebo que a maior parte das vezes é resultado de decisões pessoais e muitas vezes de gente que não percebe nada do assunto. É já altura de levar este assunto a sério até porque com a quantidade de incêndios e consequente invasão de betão corremos o risco de só ter árvores em locais públicos.
Fico doido com estes ingleses! Como é que é possível ter jardins destes? --JRF
Pois é, tem toda a razão. O regionalismo exacerbado produz desses dislates. Só uma perseverante pedagogia poderá operar a desejada transformação de tão nociva mentalidade.
Bem haja, pela lucidez e pela pedagogia.
António: seja bem vindo de regresso a estas lides; tem-nos feito falta. A propósito destes regionalismos pacóvios (ou oportunistas, nem sei bem como classificá-los), aqui está alguém que, nem de propósito, ilustra brilhantemente o que eu quis dizer.
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