Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas
Vidago
A propósito das obras que decorrem no Parque das Termas e no Hotel Palace de Vidago, recebemos do Eng. Jorge Moreira da Costa [contacto: jmfcosta(at)fe.up.pt] um artigo que merece a mais ampla divulgação:
........Era uma vez uma empresa chamada Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas. Embora fossem todas estâncias termais, Melgaço estava ali, no meio, provavelmente por soar melhor. Vidago e Pedras – como era coloquialmente conhecida – eram, sem dúvida, as jóias da coroa. Pedras, pelas suas águas que já faziam parte da fraseologia popular, Vidago também pelas águas mas, muito mais, pelo seu parque, pelo Palace Hotel, pelo ambiente de serenidade que criava. Eram jóias mas Vidago, sem dúvida, era o diamante.
........A Vidago existiu numa época em que as empresas tinham caras, tinham donos, eram mais que simples cotações de bolsa. A Vidago era de algumas pessoas, entre as quais o Conde de Caria Bernardo Mendes de Almeida, António Carneiro Pacheco e, particularmente, de Raul de Oliveira, conhecido empresário do Porto e do Dr. João Serôdio, de família igualmente ilustre e com raízes transmontanas, por sinal próximas de Pedras Salgadas.
........Raul de Oliveira e João Serôdio olhavam para Vidago e Pedras com olhos diferentes da maior parte dos seus sócios. Eram donos, mas sentiam que as vicissitudes da vida que lhes levara estas termas às mãos traziam algo mais que uma mera forma de gerar dinheiro; traziam também a responsabilidade de cuidar da cultura, da memória e da história daqueles lugares que mais de meio século de vida fazia circular entre aquelas árvores de copas gigantescas, deixando marcas em todos os que tinham a felicidade de ali entrar e estar.
........Pelos acasos que acontecem, aqui e ali, no final da década de 1950 conheceram um arquitecto jovem, na casa dos 30, que contrataram para realizar alguns projectos de remodelação das unidades de engarrafamento. Mas depressa repararam que o feitiço que os agarrava a Vidago e Pedras, levando-os a discutir energicamente com os outros sócios sobre as verbas a destinar à manutenção das instalações termais e dos hotéis, também se apoderara desse Arquitecto Jorge Moreira da Costa. E dos trabalhos mais rotineiros passou-se a outras obras de maior fôlego: remodelar os Hotéis Avelames e do Parque em Pedras, do Hotel do Golfe já em Vidago e tratar da manutenção do Palace.
........No Palace, que fechava durante o Outono e Inverno, o trabalho era quase de relojoaria: recuperar frisos e gessos de tectos, apainelados, soalhos e caixilharias de carvalho, a imponente escadaria do átrio de entrada. Também tinha algo de arqueologia, quando aqueles donos mais especiais, o Arquitecto e um funcionário dedicado chamado Senhor Canelas, que até vivia numa casa dentro do parque, se aventuravam nas enormes caves do hotel descobrindo pianos Bechstein empilhados a um canto, ânforas de alabastro, candeeiros do início do século e garrafas da reserva do hotel, sem rótulo e só com data longínqua, que iam acompanhar o jantar a quatro no enorme salão, sozinhos mas satisfeitos, antes da viagem de regresso ao Porto.
........O Palace era um hotel para aquistas mas também para famílias. Muitas vezes avós que procuravam as águas das buvettes, em copos graduados de forma oval, nada parecidos com o copo do Rei D. Carlos (ou D. Luís, já não me lembro) que estava numa vitrine na exótica Fonte Vidago I. Avós que traziam os seus netos e que precisavam de divertimento para eles. E surgiu a piscina do Palace.
........Atrás e à direita do hotel havia um espaço onde o monte parecia descansar. Mais plano, com menos árvores, o local ideal para construir uma piscina de formas arredondadas, suaves, ajustando-se ao terreno e contornando o arvoredo, própria para crianças e adultos, discreta e respeitosa perante a majestosidade do Palace, ali a 20 metros. Há locais onde apenas se entra convidado e, nesses, é de bom tom não fazer barulho.
........Durante mais de duas décadas, Vidago, o Palace e a sua piscina foram dos maiores símbolos do termalismo português. O parque, santuário de flora exuberante com algumas espécies únicas; o campo de golfe de montanha, também ímpar e estimado pelos jogadores que ali se deslocavam de propósito para defrontarem um original desafio às suas capacidades; o hotel sempre primoroso e remodelado para ampliar o número de quartos no último andar, permitindo acessibilidade a bolsas menos recheadas mas que precisavam, também, das águas, dos banhos, da paz, do descanso. O Palace não seria para todos mas também não deveria ser só para uns poucos privilegiados.
........Mas, como sempre acontece, o tempo correu e as coisas foram mudando. Os donos especiais foram partindo, os interesses dos restantes, que sempre tinham olhado para Vidago e Pedras com fito no lucro e pouco mais, voltaram-se para outros negócios, como a Fruto Real, que queria concorrer com a Sumol, a Cergal que queria ser a nova Sagres. As estâncias passaram a servir praticamente só para recolher e engarrafar água, o maná. Os hotéis, os parques, as piscinas, foram decaindo e deixadas ao abandono. O Arquitecto continuou a procurar convencer os donos da importância de manter Vidago e Pedras, mas já estava sozinho.
........Nessa altura, a VMPS foi vendida ao empresário Sousa Cintra. O Arquitecto Moreira da Costa, que ainda esteve em algumas reuniões onde se falava de grandes investimentos, de fazer isto e mais aquilo, cedo percebeu que eram palavras ocas. Vidago e Pedras continuavam quase desertas, os hotéis arriscavam-se até a perder as suas estrelas. Era demais. Nunca mais lá voltou.
........Mais recentemente, pela viragem do milénio, leu que a VMPS tinha sido comprada pela Unicer. Empresa de rosto novo, dinâmico, com ideias para revitalizar as jóias tão esquecidas por tanto tempo. Já não seria ele a tratar disso mas eram notícias interessantes. E viu escrito que um Colega de renome, Álvaro Siza Vieira, tinha sido contratado para liderar o projecto.
........Nunca soube nada sobre o que se passava. Nenhum telefonema, nenhuma pergunta, nenhuma interrogação, nenhuma curiosidade em ouvir o seu saber, um pedido para mergulhar nos arquivos de milhares de desenhos que contavam as suas histórias, a história de Vidago e das Pedras. Até que partiu também, em 2006, um ano antes de surgir numa revista uma maquete onde, no lugar onde a piscina que o seu traço tinha desenhado, com as linhas empurradas pela aragem que a floresta deixava passar, surgia um novo edifício, um SPA, mais de acordo com as modas de pendor elitista de hoje. Um edifício com a traça do mediático profissional, onde as linhas curvas e fluidas eram substituídas por outras rectas, angulosas. Ao contrário da piscina do Arquitecto Jorge Moreira da Costa, que quase pedia desculpa à montanha por se intrometer, este é um edifício que parece querer afirmar, alto e bom som, que aquele lugar é o seu, o resto que se afaste.
........Quem ainda cá está e partilhou muitas viagens, muitas tardes a conhecer os recantos da montanha, a explorar os caminhos escondidos, viu a fotografia e procurou perceber o porquê de destruir, o porquê de cortar com a memória, o porquê de fazer tábua rasa da bandeira agora tão frequentemente agitada, e ainda bem: reabilitação. Conseguiu uma entrevista com o projectista. E, nessa conversa… Porque não havia mais espaço, para não deitar árvores abaixo… A piscina estava em mau estado embora pudesse ser recuperada… Mas aquele era o único lugar. Foram as justificações. Apesar de saber que o local mais livre era, exactamente, do lado oposto, à esquerda do Palace, não discutiu. Agradeceu o tempo disponibilizado e veio embora.
........No dia seguinte, do secretariado dos novos proprietários disseram-lhe que a piscina já tinha sido demolida. Incrédulo, correu para Vidago. Mesmo com o parque vedado recordou-se dos carreiros que percorrera e que o levavam a todo o lado e foi ver, de cima do monte, o local da piscina. E era verdade. A piscina desaparecera. Várias das árvores com ela. Da estalagem, construída para manter a estância aberta na época baixa e onde existia uma sala de jantar com paredes de xisto e também um fio de água que escorria pela montanha, apenas a recordação.
........Como muitas outras histórias, esta teve um fim triste. Nem as regras da deontologia profissional nem a obrigação moral de uma empresa que não é, propriamente, a mercearia da esquina, serviram para, pelo menos, procurar encontrar o autor de uma peça de época, bela, excepcionalmente integrada, e ter um acto de cortesia, de nobreza. Dar-lhe a conhecer, em primeira mão, o que se planeava e porquê daquele modo. Ao contrário dos antigos donos que telefonavam ao Arquitecto de madrugada e diziam “Vamos para Vidago!”, nenhum dos novos senhores ainda percebeu o privilégio e a responsabilidade que têm nas suas mãos. E basta sentarem-se na escadas do Palace, voltarem-se para o lago, fechar os olhos, respirar fundo, ouvir e sentir…
........Resta a certeza que no futuro, talvez não tão longínquo como isso, a montanha vai voltar a recuperar o espaço que abriu para a Piscina do Palace. As árvores que a aconchegaram e adoptaram e, mais tarde, a acompanharam no seu abandono e final, vão acabar por ser mais fortes que o bloco urbano que ali se vai intrometer, forçando a entrada, querendo elevar-se e destacar-se, sem concorrência. Que presunção… Ninguém nem nada é mais forte que a Natureza.
........PS: O Arquitecto Jorge Moreira da Costa, mesmo com a discrição que caracterizou toda a sua vida profissional, tem direito a quatro referências no Inquérito à Arquitectura Portuguesa do Século XX, realizado pela Ordem dos Arquitectos no ano passado, infelizmente apenas uma correctamente atribuída - as Piscinas Municipais de Santa Maria da Feira. São também seus os projectos da Biblioteca Municipal da mesma cidade e de duas outras obras, cuja correcção de autoria já foi pedida por várias vezes à OA e que, parece, finalmente vai ser efectuada.
........As outras duas obras são de Vidago e Pedras. Em Vidago, o Posto de Turismo do centro da Vila, que ainda se encontra em utilização, embora a precisar de alguns cuidados. E, em Pedras, a segunda piscina que projectou para as termas. A Piscina do Palace não está mencionada, por mais estranho que pareça.
........A Piscina de Pedras é, também, uma obra de época. Aproveitou parte de um lago, tinha mais condicionantes, afastada dos hotéis, havia menos com que trabalhar. Não tem o carisma da de Vidago mas ainda lá está. Sozinha, a precisar de restauro, mas igualmente com memórias guardadas nas suas paredes e plataformas, vizinha de um minigolfe em terra batida e percursos originais, cujas formas ainda se conseguem vislumbrar, por quem o conheceu, sob as camadas de anos de folhas e vegetação caída. Se foi a insensibilidade que levou à destruição da pérola de Vidago, pelo menos que algum rebate de consciência possa levar a salvar esta.»
9 comentários :
Não percebo tanta insensibilidade, tanta descaracterização de lugares, numa sanha imparável. Este testemunho é a prova de que "as coisas" são ainda pior do que imaginava (a modernidade e o mau gosto). Obrigada por o terem trazido, assim plano, esclarecedor, aqui.
Porque só destruindo é que lhes é possível evitar comparações. Os diplomas e as "honrarias" não dão cultura. A falta desta leva ao desrespeito da memória, ao egocentrismo e à arrogância. Isto tudo à mistura de muito dinheiro, dá o resultado que temos à vista. E não há quem os pare, para já.
M.R.L.
Suponho que o Eng.º Jorge Moreira da Costa seja filho do Arquitecto homónimo: homens que se deixaram enfeitiçar pelos parques termais de Vidago e das Pedras. Fico fulminado por esta evocação do ambiente ali vivido, e pela avassaladora delicadeza deste texto. Conheço (conheci...) bem estes parques termais, e tive o privilégio de fruir a tranquilidade frondosa daquelas árvores. Há alguns anos, apresentei uma proposta de recuperação do arvoredo de um dos parques. Já nessa altura, não tive resposta. E fui assistindo dolorosamente à decadência do arvoredo. A atitude do actual projectista e da empresa proprietária é um revelador sinal de ignomínia. Essas árvores, "que são como lugares mal situados", e aqueles parques, ficarão a existir radiosamente na memória de quem os percorreu. E poderemos sempre imaginar o futuro longínquo - um tempo de novas árvores, enraizadas sobre velhos muros cegos.
M.M.F.
penso que da mesma forma que não foi respeitada a obra do Arq. Moreira, ele não respeitou a obra que já lá havia à época, como é o caso do lago das Pedras Salgadas que foi destruído para dar lugar a uma piscina que tinha espaços bem mais apropriados para nascer.
Como esclarecimento ao autor do último post, repare que o lago de Pedras Salgadas ainda lá está. O que se fez foi aproveitar menos de metade do lago para fazer a piscina, evitando destruir árvores para a colocar mais perto dos hotéis. Foi uma sensatez do Arquitecto e dos Proprietários, muito antes de se falar em sustentabilidade e respeito pelo ambiente.
JMC
ANONIMO: O meu bisavo, que morreu em 1889 foi empregado dos donos das Pedras Salgadas, e por isso quero acrecentar algumas informaçoes que tenho em minha posse.
Segundo o meu avo, o meu bisavo vivia para aquela familia( A familia Montenegro), sendo caracterizada, pela sua enorme paixao pelo patrimonio da mesma. Contudo, tinha um vicio, que era gastar o mais que podiam, eram grandes festas, viagens , compras... COmeçaram assim a surgir as primeiras dividas, ate que tiveram de realizar uma hipoteca na quinta de pedras salgadas do valor de 8 mil escudos, que traduzindo para euros hoje, sao por volta de muitos milhoes de euros. Depois ate hoje esta quinta passou pela mao de muita gente, os SErodio, Oliveira, contudo grande parte doutras familias destruiram parte de pedras salgadas. Nota: embora os montengeos nao continuassem donos, ficaram com uma misera cota que andava a volta dos 12,5%. Mto prazer....esta e a parte entao desconhecida....
Tive a oportunidade de chegar a estes comentários através de uma pesquisa no Google.
Fico satisfeito por saber que há pessoas, umas anónimas outras com as iniciais do nome, que falam sobre Vidago e Pedras Salgadas.É de facto triste ter-se destruido a Piscina de Vidago, mas o futuro diz-nos que os SPA's trazem mais lucro para os Hoteis. Quanto à Piscina de Pedras também já foi destruida.
Pois é, o parque de vidago sempre foi privado... as pessoas é que sempre se habituaram a usufruir do espaço cedido pelas diversas empresas ou particulares que detiveram a concessao. Como vidaguense também sinto tristeza por coisas que a UNICER está a fazer neste momento,.... mas compreendo que só grandes obras e um grupo experiente como a GLA HOTELS (parceira anunciada da UNICER)poderiam fazer do Parque de Vidago e trazer a Vidago os tempos áureos de outrora. Confio plenamente que daqui por uns anos todos vamos confirmar a grandeza de Vidago e os bons investimentos que a UNICER está a fazer neste momento.
COMO FAMILIAR AFASTADA DO MESTRE E ARQUITECTO VICENTE COSTA. AUTOR DE ALGUMAS OBRAS EM CHAVES E VIDAGO. GOSTARIA SE POSSÍVEL ALGO MAIS SOBRE AS SUAS ARQUITECTURAS.
SEI QUE FEZ A FAMOSA ESCADARIA DO HOTEL PÁLACE VIDAGO E ALGO NA ADEGA DE FAUSTINO, NÃO TENHO MAIS NENHUMA REFERENCIA SOBRE AS SUAS FEITORIAS, APENAS TEMOS UMA FOTO MUITO ANTIGA CEDIDA POR FAMILIARES.
SEM OUTRO ASSUNTO SUBSCREVO-ME ATENCIOSAMENTE E OBRIGADA.
CLEMENTINA DUQUE ESPOSA DO NETO DE VICENTE COSTA
Enviar um comentário