02/05/2011

Flora do farol


Armeria pubigera (Desf.) Boiss.


Há uma dúzia de anos, quando se urbanizaram os terrenos no litoral de Leça da Palmeira entre o tradicional núcleo da vila e a refinaria da Petrogal, a campanha publicitária incluía filmes de animação com imagens virtuais dos interiores e exteriores do futuro bairro. Sabe-se que a realidade encenada por promotores imobiliários é um paraíso asséptico só com gente loura, activa e sorridente, mas havia ainda outra mentira nesses filmes: nenhuma chaminé da refinaria maculava com os seus fumos e cheiros o horizonte limpo, onde apenas se recortavam, contra o azul do mar, o farol, a capela e casa de chá. Terá alguém comprado um T-muitos-duplex sem se dar conta da indesejável vizinhança até ser tarde de mais?

Antes da refinaria e da urbanização galopante, estes lugares entre a Boa Nova, o Cabo do Mundo e a Praia da Memória continham uma notável diversidade vegetal sustentada por vários ribeiros e charcos. Em resultado das drenagens e dos entubamentos, as plantas higrófilas de beira-mar desapareceram quase todas; sobreviveram e até prosperaram, apesar da invasão dos chorões, as plantas especializadas que ocupam o cordão dunar. E uma outra comunidade vegetal escapou quase incólume aos assaltos do progresso: a que se refugia nas rochas marítimas, nos interstícios dos grandes penedos graníticos que abundam na Boa Nova e explicam a construção do aviso aos navegantes. Sobre a flora do farol publicaremos três fascículos de que este é o primeiro. Em jeito de aperitivo, assinalamos que é nos rochedos da Boa Nova, mesmo por trás da casa de chá, que vive uma boa população de Asplenium marinum, um feto nada comum em Portugal.

A Armeria pubigera é uma versão miniatural (folhas mais curtas, inflorescências mais pequenas) da Armeria maritima, que aparece no estuário do Cávado e de outros rios nortenhos. Ocupam habitats distintos: a A. maritima prefere os terrenos lodosos dos sapais; a A. pubigera gosta da firmeza da rocha, embora na Galiza (ilha de Arousa) não desdenhe ocupar areais. E a Armeria maritima, distribuindo-se por todo o hemisfério norte, é muito mais viajada do que a sua irmã mais nova: a Armeria pubigera é um endemismo galaico-português, com o farol da Boa Nova a marcar o limite sul da sua distribuição.

Embora esse pormenor fique camuflado pelos tufos de folhas sempre-verdes, a Armeria pubigera tem uma base lenhosa e muito ramificada. Os seus galhos, de tão emaranhados e retorcidos, são aliás testemunho de uma vida longa a que o sopro salgado do mar só parece dar alento. São muitas as armérias da Boa Nova e têm-se multiplicado e florido imperturbavelmente ano após ano. Se o leitor visitar Leça nas próximas semanas, não deixe de ir espreitar os rochedos em flor.

1 comentário :

bettips disse...

Como gostei de (re)pensar. Isso.
Quando construíram a refinaria, todos os ricos arquitectos e afins, à época, mudaram e abandonaram as casas no Cabo do Mundo!
Mudam-se os tempos, mudanças de mentalidades e condomínios. No meu entender, para pior.
Abçs