06/11/2012

Caldeira de nuvens

Euphorbia stygiana H. C. Watson


Quando cheguei à Terceira, no início de Outubro, toda a ilha se preparava com alvoroço para receber a «tempestade tropical». Iam ser dias bem preenchidos com acontecimentos emocionantes ou solenes: dia 4 de Outubro, furacão à solta, com escolas encerradas e a população aconselhada a não sair de casa; dia 5 de Outubro, derradeiras comemorações da República; dia 6 de Outubro, rali da Terceira com relato circunstanciado na estação de rádio local que, como passageiro da EVT, fui obrigado a ouvir.

Correu quase tudo conforme previsto, com excepção da pífia «tempestade tropical». Ter-se-á ela, qual navio sem comandante, enganado na rota? É que as ilhas, rochedos minúsculos no oceano, não se deixam encontrar por acaso. Ou, sabendo que o que aí vinha era tempestade do mais fruste quilate, terão os serviços públicos, num assomo de desobediência cívica, conspirado para juntar um feriado extra ao último 5 de Outubro?

Mas ainda bem que os prognósticos catastróficos foram desmentidos. Os ilhéus foram poupados a transtornos e prejuízos; e eu, em vez de me fechar temerosamente no hotel, lancei-me nos passeios que tinha planeado. O verde fresco das matas, o caudal farto dos ribeiros e os caminhos encharcados davam testemunho das chuvas recentes, num alegre contraste com o estado de secura da ilha em outubros de anos anteriores. As galochas revelaram-se indispensáveis, mas foi imprudente usar calçado tão desconfortável em caminhadas longas. Uma bolha dolorosa num pé, nos meus dois últimos dias de estadia, acabou por ter um efeito sedentário bem maior que o da falhada tempestade.

Chuva e névoa houve todos os dias, mas são esses os ingredientes que dão o característico toque de fantasmagoria ao interior da ilha. Quando, guiado por Fernando Pereira (um grande bem-haja pela gentileza!), subi o Pico Gaspar ao encontro do trovisco-macho, as fotos teriam ganho em nitidez, mas perdido em valor documental, se a caldeira não parecesse uma fumegante panela de pressão. O nevoeiro é açoriano e é especial por isso — tanto como o arbusto que justificou a escalada, ele é endémico das ilhas.

O trovisco-macho, que na verdade se chama Euphorbia stygiana, é uma eufórbia gigante que por vezes assume proporções arbóreas; dotada de uma copa muito ampla, pode ultrapassar os 5 metros de altura. As folhas, com 10 a 15 cm de comprimento, são lustrosas e decorativas; as flores, que não pude ver, surgem entre Maio e Agosto. Por nunca se despir da folhagem, a sua beleza nunca fica aquém daquilo que as fotos mostram.

A vocação ornamental desta eufórbia é tão evidente que custa entender a sua ausência dos jardins. Se fosse muito abundante na natureza, compreender-se-ia que as açorianos, fartos de a ver por todo o lado, não tivessem interesse em domesticá-la. Mas sucede justamente o contrário: a Euphorbia stygiana é rara, e está mesmo ameaçada na maioria das ilhas. Será que as exigências ecológicas peculiares tornam o seu cultivo impossível? Não parece que assim seja, pois — informa o Google — a planta é comercializada por hortos estrangeiros.

Muito semelhante à E. stygiana, e ainda mais popular fora do país como ornamental, é a madeirense Euphorbia mellifera. Mesmo que geneticamente próximas, as duas nunca poderiam produzir um híbrido na natureza, por falta de oportunidades de contacto mútuo. Mas foram plantadas lado a lado no jardim botânico de Oxford, e da sua interacção não premeditada nasceu um híbrido baptizado Euphorbia x pasteurii, ao que consta de grande mérito hortícola.

3 comentários :

Fernanda Delgado do Nascimento disse...

Epilogo fantastico, pena que santos da casa continuem a não fazer milagres... Contudo tenho esperança no futuro e julgo que todo o vosso contributo para o esclarecimento terá forçosamente de dar alguns frutos.

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário. Nós, tal como a Fernanda, fazemos isto por gosto. A nossa influência será sempre pequena, mas pode ser que as coisas vão mudando. Para já somos talvez o povo europeu que menos bem conhece o seu património natural.

Carlos M. Silva disse...

Olá
Tendo vivido na Madeira um ano (noutro século) poderia conhecer um pouco da flora dessa ilha mas nessa altura,mesmo tendo calcorreado a ilha quase de lés a lés, 'nem sabia que havia flora'!!! Quanto aos Açores o desconhecimento é igual ou ainda maior mas para ambas as regiões mas principalmente para esta destes posts açorianos só tenho um comentário: quase parecem postais de um 'mundo perdido' tal o exotismo de algumas que aqui têm colocado!
Obrigado.
Carlos M. Silva