13/09/2013

Santa Bárbara quando não troveja

Serra de Santa Bárbara, ilha Terceira


A minha primeira visita à Terceira foi em Outubro de 2001, para assistir ao concerto de Tommy Flanagan no AngraJazz. Já era tarde para cancelar a viagem quando, a bordo do avião de Lisboa para as Lajes, li no Público (então distribuído gratuitamente a todos os passageiros, e não apenas aos de classe executiva) que razões de saúde tinham forçado uma alteração de programa: em vez de Tommy Flanagan, pianista dos dedos mágicos, teríamos Cedar Walton, músico com longo e estimável currículo. Iria até ao fim do mundo para ouvir Flanagan, mas dificilmente iria à Terceira só para ouvir Walton. As razões de saúde eram graves: Flanagan morreu seis semanas depois, em 16 de Novembro de 2001. Em outubros de anos sucessivos, voltei muitas vezes à Terceira e ao AngraJazz, mesmo sabendo que Tommy Flanagan nunca lá iria tocar, mesmo quando o cartaz não era dos mais promissores. O festival de Jazz era tão só o pretexto para regressar às ruas de Angra, ao jardim Duque de Terceira, à visão da baía do alto do Monte Brasil, ao sossego da Praia da Vitória. Sim, comprava bilhete para todos os concertos, então realizados nos claustros do museu e com os espectadores sentados em esplanada que fingia ser o Village Vanguard, mas com maior tinir de copos, mais conversa e menos atenção aos artistas em palco (sobretudo quando algum infeliz contrabaixista se lançava num solo). A amplificação era ensurdecedora, e esgotante o formato de concertos duplos com arrastados intervalos: o entusiasmo pela música nem sempre me segurava até ao final do segundo concerto, para lá da uma da manhã.

Depois o AngraJazz transferiu-se para o novíssimo Centro Cultural e de Congressos. Melhorou o som, havia mesas mas também lugares nas bancadas para quem preferisse a música à conversa. Até que compreendi, sem menosprezar o festival, que a ilha me bastava como motivo para a viagem, e que, interessando-me por plantas, era estúpido visitá-la apenas no mês de Outubro. É verdade que é nessa altura que a paineira (Chorisia speciosa) do jardim dos Capitães Generais começa a florir, mas também no Porto há uma paineira, embora mais rala de flores. Angra sem Jazz, ou a Terceira sem música, é diurna e sem dores de cabeça, mais apropriada à meia idade que vai chegando.




Este ano, em Agosto, eu e a Maria visitámos a Terceira juntos pela primeira vez. Das minhas visitas anteriores, em grande parte confinadas à cidade de Angra, tinham sobrado pedaços substanciais da ilha por desbravar, e muito do que vimos agora era de igual modo novidade para ambos. Uma ilha tão pequena alberga mundos muito diversos: a faixa litoral, onde as povoações se alongam num casario baixo, quase contínuo; um segundo anel formado por pastagens e plantações de criptomérias; e o núcleo central de montes vulcânicos com um revestimento cerrado de floresta nativa. O visitante de hábitos mais sedentários raramente tem um vislumbre desse terceiro estrato da paisagem insular, e mesmo a maioria dos autóctones parece ignorá-lo. De todas as ilhas açorianas, é a Terceira que guarda a maior e mais bem preservada extensão da floresta de louro e cedro que existia antes da chegada dos portugueses ao arquipélago. A conversa enganadora da "natureza em estado puro" com que se vende o "destino Açores" aos turistas, ilustrada com fotos de hortênsias e lagoas de um azul Photoshop, poderia ter nesta ilha, muito mais do que em São Miguel, um significado genuíno. Mas nem a criação do Parque Natural da Terceira, agregando as mais valiosas áreas naturais da ilha, convence os operadores turísticos a renovarem o discurso.

Não que fosse desejável ter essas áreas invadidas por multidões. A quase inacessibilidade de algumas delas é que garantiu a sua preservação; o silêncio e o isolamento seriam feridos de morte com o rodopio contínuo de turistas. Haveria que restringir os percursos e condicionar a carga de visitantes — coisas que, em parte, já foram feitas, mas não suficientemente divulgadas. A floresta de nuvens da Terceira é tão emocionante e labiríntica como uma floresta tropical. Deveria ser cartaz da ilha, tanto como Angra-património-mundial, o Algar do Carvão e as marradas dos touros.

A caldeira de Santa Bárbara, uma imensa cratera com 13 Km de diâmetro, recheada, qual matriosca, com mini-crateras no seu interior, é talvez o mais valioso pedaço de natureza em todo o arquipélago açoriano, visitável só com autorização do Parque Natural da Terceira. Embora não existam barreiras intransponíveis para quem, clandestinamente, queira descer à caldeira, a verdade é que os trilhos se vêem mal, são cheios de bifurcações enganadoras, e há muitos buracos, ocultos pela vegetação ou por almofadões de Sphagnum (musgão), em que nos podemos magoar seriamente. O nevoeiro pode baixar sem aviso de um momento para o outro, confundindo qualquer senso de orientação. Tudo para concluir que o forasteiro, além de se munir da necessária autorização, deve ter a previdência e a humildade de recorrer aos serviços de um guia.

Foi o que fizemos: a guia por quem tivemos o privilégio de ser acompanhados não poderia ser mais conhecedora nem mais atenciosa. Mas na data aprazada, se não trovejou, o dia amanheceu chuvoso e nublado como nenhum outro durante a semana em que permanecemos na ilha. O estado de encharcamento geral, com as botas convertidas em esponjas, ditou que o passeio fosse algo abreviado. A maior parte da água que se nos agarrou ao corpo provinha não da chuva mas daquela que o nevoeiro fazia condensar nas árvores e arbustos pelos quais rompíamos. Toda a serra funciona como uma grande máquina de captação e armazenamento de água. O interior da caldeira é uma turfeira quase contínua, pontuada por lagoas de margens traiçoeiras. Os cedros-do-mato (Juniperus brevifolia), reduzidos a arbustos ou árvores-anãs, têm os troncos mergulhados no mesmo Sphagnum que cobre as ravinas. Os musgos e os fetos epífitos (Hymenophyllum, Elaphoglossum semicylindricum) formam nas árvores um rendilhado profuso que não deixa sequer adivinhar a cor dos troncos. Tapetes amarelos de Tolpis azorica e de Leontodon filii proclamam, por entre a névoa, que nos Açores a Primavera acontece em Agosto. Três raridades botânicas fazem uma breve aparição: a Scabiosa nitens, a Pericallis malvifolia e o Ranunculus cortusifolius.

Angelica lignescens Reduron & Danton


E a Poderosa Angélica, magnífica como nunca a vimos nas outras ilhas, num contingente de várias centenas de exemplares, tem aqui finalmente o cenário que condiz com o seu porte. Foi para se debruçar vertiginosamente no bordo da caldeira que ela ergueu a descomunal cabeçorra, onde o adiantado da estação fizera já substituir as flores por frutos.

7 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá
Tenho andado arredado de comentários mas não de espreitadelas mesmo que rápidas. Mas certamente voltarei atrás ..que demorar o olhar ..é preciso.
E que posso dizer para além de não conhecendo essa ilha, ainda menos conheço do que falas e escreves, botanicamente falando?

A Poderosa Angélica, de que por aqui já vira referências de outras ilhas (acho) competiria certamente com a 'Poderosa Afrodite', excepto no que esta última tenha de menos terreno ..ou mais carnal.

Belo texto no qual as fotos, belas e ilustrativas, nem seriam precisas, por que a escrita as ilustra em perfeição.

Abraço.
Carlos M. Silva

bea disse...

Bolas! que bonito que isto é. Ainda não li, só os olhos a beber o verde.
BFS

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário, Bea.

Olá, Carlos.
Bons olhos te leiam. Devias marcar umas férias nos Açores: para quem já andou à aventura nas Américas é uma viagem de nada. E de certeza que, além das plantas, há lá bichos voadores que nunca viste no Continente.
Abraço,
Paulo

Carlos M. Silva disse...

Olá

Já lá estive, na de S. Miguel mas isso foi à muito,muito tempo ..quando não sabia que havia plantas e outras coisas ..tipo 8 anos!
Portanto ..o que tenho (até por que fui acompanhar os velhotes) ..são quadros bonitos, mas são quadros.
Sim ..já pensei pelo menos ir e subir ao Pico; nos States ..escapou-me (pudera) descer (e voltar a subir pois claro) ao G. Canyon ..e se não me apresso ..nem ao Pico conseguirei subir.
Uma pessoa pensa que é eterna ..e que o pico da vida ..ainda demora ..e depois ajoelha-se.
Mas olha ..Paulo ..nem à Madeira voltei e já foi à 21 anos!
Mas sim, terás razão. A razão ou todas as razões do que tens falando .quando aqui escreves sobre os Açores.
Pode ser ..
Abraço
Carlos M. Silva

a.mar disse...

Que lindo lugar!

Obrigada pela partilha!

Luz disse...

Lindo! Já tinha saudades vossas... :)

Quinta da Vinagreira disse...

Foi uma verdadeira aventura à Indiana Jones a descida à Serra. É muito bom ler os vossos textos, pois apesar de tanto esforço e alguma frustação, vocês conseguem descrever aquele local com esta magia. É verdade que é de facto um lugar mágico, embora com humor muito particular. Não preciso dizer que as vossas palavras são do melhor que se escreve da natureza dos Açores, é pena de facto continuarmos a vender hortências...o que fazer!