06/05/2015

O café de que o rei gostava


Astragalus boeticus L.


O perfil agrícola que Portugal teve, e que começou a alterar-se há quatro décadas, tornou-se um capítulo do passado que se evita reler. Tal impressão desagradável não se refere, evidentemente, aos grandes produtores de fruta, cortiça, azeite ou vinho, que continuam a existir e a quem nunca faltaram incentivos e mérito. O que não deixou saudades foi a parte do país pobre, ignorante e acanhado, à mercê das intempéries, que se limitava a amanhar batatas e couves para se alimentar. Mas até as boas revoluções comportam enganos e, no nosso caso, houve um detalhe que nos escapou: julgou-se que, para além dos camponeses sem recursos e dos latifundiários bem sucedidos, não havia mais nada a ter em conta na nossa agricultura tradicional. Esqueceram-se dos poucos que praticavam uma lavoura informada, ainda que em pequena escala, que tirava bom partido das plantas, aromáticas e não só, cujo cultivo beneficiava o país com saúde, produtos agrícolas originais e comprazimento à mesa. Anos volvidos, resignados à comida insípida, vemos essas plantas servirem a gastronomia de luxo, orientada por chefes de cozinha que souberam aliar-se às fines herbes para obter mais sabor dos alimentos.

Vem este arrazoado a propósito de um artigo sobre a planta que aqui trazemos publicado em 2014 na revista Genetic Resources and Crop Evolution, incluído na secção dedicada a «neglected and underutilized crops». Ali se descrevem plantas cujo cultivo é hoje mal aproveitado, sobretudo se comparado com o seu sucesso como alimento noutras épocas. E este legume é bom exemplo disso. Conhecido como Swedish coffee por ter servido, no séculos XVIII e XIX, para produzir um substituto do café que os reis suecos de então (entre eles Gustavo III e o seu filho Gustavo IV) muito apreciavam, foi consumido em quase toda a Europa durante períodos em que as colheitas de café foram escassas ou ele esteve proibido*. Gradualmente, contudo, essa prática foi abandonada e a bebida de Astragalus boeticus foi substituída pelo sucedâneo de café obtido das raízes da cenoura ou da chicória, de preço semelhante mas, dizem os entendidos, de menor qualidade. Para os autores do artigo (que leva o título de Swedish coffee (Astragalus boeticus L.), a neglected coffee substitute with a past and a potential future), está na altura de relançar o cultivo e o consumo deste Astragalus, com benefícios antioxidantes comprovados e cujas vagens (de secção triangular e com um pequeno gancho na ponta) são também comestíveis. Para os que são intolerantes à cafeína, esta poderia tornar-se uma alternativa bem-vinda.

Como quase todas as leguminosas, esta planta é capaz de, em associação com bactérias apropriadas, fixar azoto do ar e assim reduzir a necessidade de fertilizantes. Talvez por isso, é pouco exigente quanto ao solo e à rega, embora se dê melhor em terreno arenoso e em locais com boa exposição solar. A favor do seu uso como substituto do café estão a ausência de um período obrigatório de dormência das sementes e o carácter indeiscente das vagens (não se abrem espontaneamente quando maduras e, por isso, não libertam descuidadamente as sementes). Além disso, floresce no início da Primavera e dá frutos no Verão, permitindo uma colheita antes dos rigores do Outono-Inverno.

É uma herbácea anual nativa da região mediterrânica, Médio Oriente e Macaronésia. Por cá, há poucos registos dela e situam-se quase todos no sul do país. Tal como no caso do Astragalus tragacanta, não são as flores, esbranquiçadas e agrupadas em cachos penugentos, a parte que nos parece mais bonita nesta planta. É a folhagem que chama a atenção, com as longas folhas imparipinadas, ciliadas e de um verde intenso.
*Proibido? É verdade: por ser importado e essa despesa ter demasiado impacto na balança comercial; por ser estimulante controverso, e ser preciso um papa para inocentá-lo; por estar associado a lugares de reuniões políticas ou religiosas potencialmente subversivas. A permissão para o seu consumo pelas mulheres chegou mais tarde, a par de outros direitos, como testemunha a Coffee Cantata, de Bach.

3 comentários :

Francisco Clamote disse...

Interessantíssimo. Parabéns!

João Gomes disse...

Aspas Aspas! E dai lembrar-me, seriam as rai´zes do nosso astrogalus lusitanicus igualmente comestiveis? Ou são mesmo tóxicass á semelhança das folha e frutos?

Maria Carvalho disse...

Obrigada a ambos pela vossa gentileza.

Não sei, João, é melhor não arriscares.