Creme de cenoura
Com a globalização galopante, vão-se perdendo as marcas da identidade nacional. Qualquer dia os restaurantes portugueses só se distinguirão dos espanhóis por terem o menu traduzido em mau inglês e por os garçons se exprimirem, perante os estrangeiros, numa língua de circo a que caridosamente chamaríamos portunhol. Move-os (aos garçons) a ideia de que, seja qual for a nacionalidade dos clientes, eles os entenderão melhor se disserem pêzzcáda ou criémê de zênôra (palavras que não existem em língua nenhuma) em vez de pronunciarem correctamente pescada e creme de cenoura. O dito creme de cenoura, porém, configura um abastardamento dos costumes em comparação com o qual a questão linguística não passa de um fait divers. A tragédia é que os portugueses estão a deixar de comer sopa. Quando se senta à mesa em clima de festa uma família numerosa, a sopa é um castigo reservado às crianças. Talvez se julgue que ela faz bem até certa idade (13 ou 14 anos) mas para um adulto é sinal de fraqueza ingerir um caldo de legumes. E a sopa-enquanto-alimento-infantil deve previamente ser convertida em creme, não vá a dentição frágil quebrar-se ao mastigar um talo de couve mal cozida. Constatando que a sopa não tem saída ou, quando tem, só é servida depois de "passada", os restaurantes que ainda a incluem na ementa ficam-se pela versão "creme de legumes". E se é para desfazer os legumes, misturando-os indistintamente, escusado será usar uma grande variedade deles. Com isto chegamos ao malfadado creme de cenoura, que é a sopa à beira da extinção.
Cumprido o desabafo, aqui vai a primeira informação paracientífica do dia: o que há de mais estranho no creme de cenoura é a cor. É natural que o creme assuma a cor do ingrediente (neste caso a cenoura) que foi triturado para o produzir, mas o que já não é natural é que a cenoura tenha a cor que tem. Aquilo que consumimos sob o nome de cenoura é a raiz intumescida de uma umbelífera, Daucus carota subsp. sativus. Acontece que os antepassados silvestres dessa planta têm raízes brancas ou amareladas, e a versão cor-de-laranja a que estamos habituados só surgiu no século XVII, provavelmente na Holanda. Nos países com um mercado gourmet mais diversificado, encontram-se ainda à venda essas cenouras pálidas que, parecendo curiosidades, são afinal menos artificiais do que as cenouras comuns. Creme de cenoura branco? Seria uma novidade, mesmo que não fosse menos insípido.
A versão silvestre da cenoura tem em geral raízes minguadas e pouco comestíveis (são-no apenas quando muito tenras) — caso contrário, sendo ela tão abundante por toda a Europa e também na Ásia, nunca teria havido necessidade de a domesticar. Para os botânicos, a variabilidade da espécie Daucus carota é motivo de estudo, discussão e controvérsia. A Flora Ibérica considera existirem na Península oito subespécies de cenoura silvestre, mas o critério usado nessa divisão não é universalmente aceite e, ao desvalorizar como subespécie um endemismo lusitano distintivo como o Daucus halophilus, não parece isento de pendor nacionalista. Não menos discutível será a subordinação da subespécie maritimus, formada por plantas quase glabras, débeis, de umbelas pequenas, à subespécie carota, que integra plantas mais hirsutas e espigadas, de umbelas maiores. A única vantagem da simplificação proposta pela Flora Ibérica é que a cenoura que vemos em quase em todo o continente pertence à subespécie carota, tendo as outras três subespécies por cá assinaladas uma presença muito pontual. Mas se dermos dois passos do lado de lá da fronteira já tudo se complica.
E nos Açores? Graças à circunstância de a Flora Ibérica não se ter ocupado das ilhas, ainda hoje ocorrem oficialmente duas subespécies de Daucus carota no arquipélago. A mais comum das duas, ilustrada nas fotos, é tida como endemismo açoriano, ocupando em todas as ilhas habitats muito diversos desde falésias costeiras até terrenos baldios, pastagens e bermas de estrada. A segunda, presente apenas em quatro ilhas (São Miguel, Graciosa, São Jorge e Faial), é a subespécie maritimus. Há uma clara diferença de tamanho entre as duas subespécies, com a subespécie azoricus a vencer por larga margem, e há diferenças também na pilosidade e no formato das folhas: na subespécie azoricus os segmentos de última ordem das folhas são curtos e arredondados (4.ª foto), enquanto que na subespécie maritimus são longos e estreitos, quase lineares. Talvez estas diferenças não passassem no crivo de quem gosta de amalgamar coisas díspares, mas enquanto isso não sucede este Daucus carota subsp. azoricus vai segurando o seu incerto galardão de endemismo açoriano.