Uma flor para Rapunzel
Phyteuma hemisphaericum L.
Gostamos de tecer à volta das plantas histórias que dêm testemunho da sua convivência com os homens. Podem ser lendas, contos de fadas ou tradições de origem incerta, mas o importante é sentirmos que, muito antes de nós, outras vidas se cruzaram com essas plantas e foram influenciadas por elas. Às vezes, porém, esta vontade de humanizar as plantas, sobretudo as que não têm uma utilidade óbvia, esbarra em incertezas inultrapassáveis. Os nomes populares das plantas são, em regra, caóticos: dependendo da região em que é usado, o mesmo nome pode designar plantas muito diferentes (veja-se a persistente confusão entre o Rhododendron ponticum e o Nerium oleander, ambos conhecidos como loendros); além disso, a mesma planta pode ter diversíssimos nomes. Há ainda os nomes que são esquecidos à medida que o conhecimento tradicional das plantas se vai perdendo, e outros que subsistem vagamente sem que se saiba ao certo que plantas teriam sido por eles designadas. Por exemplo, dizem certas fontes que o topónimo "Carregal" resultaria de "carrega", que seria uma gramínea própria de lugares alagadiços, mas hoje em dia não parece haver em Portugal nenhuma planta que seja conhecida por esse nome.
Contam os irmãos Grimm que Rapunzel, a rapariga de longos cabelos aprisionada numa torre, devia o nome à planta que a sua mãe comeu avidamente quando estava grávida, e pela qual pagou o preço de entregar a filha à bruxa logo após o nascimento. Rapunzel seria o nome dado localmente a alguma variedade de Phyteuma, mas é improvável que se tratasse da planta alpina que hoje apresentamos, pois ela, pela sua pequenez e estreiteza de folhas, pouco teria que se comesse. Na verdade, é até plausível que a planta que saciou a fome à mãe de Rapunzel não fosse uma Phyteuma, mas sim uma outra campanulácea, a Campanula rapunculus, planta comprovadamente comestível usada em tempos como substituta do rabanete.
Uma recolha de contos tradicionais não é um tratado de botânica (nem sequer de etnobotânica), e não devemos censurar os irmãos Grimm pela falta de notas de rodapé que resolvessem semelhantes dilemas. Poderiam tê-lo feito, pois viveram depois de Lineu, quando as plantas europeias mais comuns dispunham já de nomes científicos de aceitação universal. Os dois nomes em jogo neste caso (Campanula e Phyteuma) até são da lavra de Lineu, ou pelo menos foram por ele legalizados, já que "Campanula" foi antes usado por Tournefort (1656–1708). Quanto a "Phyteuma", Lineu parece ter sido o primeiro a usá-lo para estas plantas, muito diferentes daquelas (do género Reseda) que tinham o mesmo nome na antiga Grécia. Nem sempre as escolhas taxonómicas de Lineu obedeceram a uma lógica inatacável.
Dispersa por prados e fissuras de rochas nas mais altas montanhas da Europa ocidental, desde os Alpes aos Pirenéus e à Cantábria, esta herbácea de uns 10 a 20 cm de altura só floresce no Verão. É uma das cinco espécies do género Phyteuma na Península Ibérica, todas elas (tanto quanto se sabe) ausentes do nosso país. A inflorescência globosa, reunindo uma dúzia de pequenas flores, é típica do género: cada flor é tubular e as pétalas começam a descolar por baixo, deixando entrever os estames; o estilete, rematado por três estigmas, fica a sobressair do "tubo" (penúltima foto). Enquanto estão fechadas, as flores assemelham-se a um molho de garras afiadas, mas depois as inflorescências assumem um aspecto desgrenhado, como se fossem taças de esparguete azul.
1 comentário :
Uma maravilha!!
Enviar um comentário