Mistério suculento
Tolpis succulenta (Dryand.) Lowe — fotografada no Porto Santo
Uma planta lenhosa quase rastejante, lançando uma confusão de hastes folharudas, entrelaçadas como teias de aranha, salpicadas de flores amarelas: eis o retrato à la minute da Tolpis succulenta, um endemismo da Madeira e dos Açores, por ocasião da sua terceira visita a este blogue (visitas anteriores: 1.ª, 2.ª). Tem sido nossa política não repetir convidados, para que a tarefa de mostrar toda a flora portuguesa (ou ibérica, ou macaronésia, ou do vasto mundo que ainda nos falta conhecer) possa alguma vez estar concluída. Por que razão abrimos, e pela segunda vez, uma excepção para este malmequer arbustivo? Gostamos da planta, e estamos dispostos a defender-lhe a beleza contra todos os detractores. A beleza vegetal, diga-se, não é uma qualidade absoluta e abstracta, independente de um contexto. Uma flor que irrompe da pedra, que consegue alimentar-se da secura, suscita-nos maior adesão emocional do que as abundantíssimas flores dos prados. E, entre todas as possíveis formações rochosas, as das ilhas atlânticas são as que mais nos entusiasmam, por ser duplamente improvável (pela pequenez da ilha face ao oceano e pela aridez da pedra) que a vida ali conseguisse instalar-se.
Sim, tudo isto é verdade, mas a Tolpis succulenta não é a única planta das ilhas nesses habitats, e é indisfarçável que lhe temos dado tratamento preferencial. Acontece que ela, apesar de assinalada nos dois arquipélagos, apresenta um tal grau de variação que, se as plantas da Madeira fossem apresentadas às dos Açores (ou vice-versa), dificilmente as reconheceriam como suas iguais. Para comprovar o estranhamento mútuo, juntamos aqui fotos das duas variantes: em cima a madeirense (do Porto Santo), e em baixo a açoriana (de São Miguel). Salta à vista que uma tem folhas muito mais estreitas do que a outra, e que, embora o seu recorte possa variar muito, elas são tendencialmente pinatífidas na Madeira e com margens dentadas ou inteiras nos Açores. E a disposição das folhas basais numa quase-roseta é frequente na T. succulenta madeirense (ver 1.ª foto acima) mas não se observa nas plantas açorianas. Para que não se julgue que fizemos uma escolha capciosa das fotos para confirmar uma crença a priori, veja-se como nesta página da Naturdata, com imagens das duas T. succulenta, as diferenças são ainda mais notórias. As preferências ecológicas são também distintas: ao contrário do que sucede na Madeira e no Porto Santo, onde aparece em picos rochosos a altitudes consideráveis, nos Açores (e com excepção de Santa Maria, onde está por todo o lado) a T. succulenta é uma planta exclusivamente costeira.
Face ao testemunho das imagens, a estranheza é que as duas variantes tenham sido incluídas na mesma espécie, mesmo considerando que noutras épocas, não existindo fotografia digital nem estando banalizadas as viagens aéreas, as comparações não seriam tão fáceis como hoje. As plantas são organismos vivos, não objectos padronizados saídos duma linha de montagem; por isso, as descrições verbais de uma qualquer espécie admitem sempre uma margem de variação. O problema é quando o intervalo de variação é tão generoso que abarca, nos seus extremos, coisas realmente distintas. Foi o que sucedeu à Tolpis succulenta: com um bocadinho de elasticidade, conseguiu-se que a descrição originalmente aplicada às plantas madeirenses se aplicasse também às açorianas, embora de facto se estivessem a meter alhos e bugalhos no mesmo saco.
Além das óbvias diferenças morfológicas, sabe-se hoje que as duas variantes da T. succulenta são geneticamente distintas. Na verdade, a T. succulenta açoriana está evolutivamente mais próxima da T. azorica (a outra espécie do género endémica dos Açores) do que da T. succulenta madeirense. Há 15 anos que esse (tão mal guardado) segredo é conhecido. Num artigo intitulado Chloroplast DNA evidence for the roles of island colonization and extinction in Tolpis (Asteraceae: Lactuceae), publicado em 2002 no American Journal of Botany, os autores (Michael J. Moore, Javier Francisco-Ortega, Arnoldo Santos-Guerra, Robert K. Jansen) dizem o seguinte:
«We chose to follow Jarvis (1980) in using the name T. succulenta for plants of both the Azores and Madeira Islands. However, it seems clear from observations in the field, as well as from our cpDNA restriction site data, that the plants Jarvis and others have referred to this name segregate into two species, one endemic to the Azores and the other to the Madeiran archipelago.»
A mesma observação foi reforçada em artigos recentes de outros autores (por exemplo neste de Dezembro de 2015, da autoria de Lurdes Borges Silva, Julie Sardos, Miguel Menezes de Sequeira, Luís Silva, Daniel J. Crawford e Mónica Moura), mas falta ainda dar um nome apropriado à espécie açoriana para que ela seja oficialmente reconhecida como endémica do arquipélago, e para que a genuína T. succulenta seja tratada como endemismo madeirense. O problema não é assim tão simples, pois mesmo dentro dos Açores a espécie exibe variações importantes (por exemplo, as plantas do grupo central têm capítulos bem menores do que as de São Miguel e de Santa Maria). Talvez um só nome novo não baste. Aguardamos com expectativa as surpresas dos próximos capítulos.
Tolpis succulenta (Dryand.) Lowe — fotografada em São Miguel
1 comentário :
Interessantíssimo e muito bem fundamentado.
Este texto pode(ria) ser muito útil na disciplina de biologia e geologia do 11º ano do ensino secundário, caso haja (se houvesse...) tempo para fundamentar melhor os mecanismos da evolução biológica e da origem de novas espécies.
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