Ouro em pó
Uma das obrigações do turista em São Miguel é, pelo menos uma vez, tomar banho nas águas sulfurosas e tépidas da Caldeira Velha. Não será bem uma obrigação, já que pode fazer o mesmo no parque das Furnas, mas a Caldeira Velha é um lugar mais recatado, tanto por ter entrada paga como por ser afastado das povoações. Há uma fonte de água escaldante, capaz de cozer qualquer incauto que nela mergulhe, mas que logo depois se mistura com a água fria de um ribeiro para alimentar várias piscinas naturais a uma temperatura tão deliciosa como a do banho lá em casa.
Desde a entrada até às piscinas, são muitos os avisos aos visitantes para não saírem dos caminhos e não pisarem ou danificarem a vegetação. Quem ignora as indicações é imediatamente admoestado pelos vigilantes que patrulham o recinto. Justificar-se-á tanta preocupação por estarmos num refúgio de espécies raras da flora açoriana, que importa pôr a salvo das tropelias dos visitantes? O coberto vegetal, infelizmente, não merece tal desvelo, dominado que é por plantas ruderais e pelas mesmas exóticas invasoras a que nos habituámos. Sim, a colecção de fetos ou afins (Dryopteris azorica, Diplazium caudatum, Culcita macrocarpa, Palhinhaea cernua) é valiosa e atraente, mas não chega para disfarçar o desmazelo no controle da vegetação infestante. Um pífio "jardim de endémicas", em estado de completo abandono, com uma dúzia de árvores que nunca hão-de crescer, algumas já secas, esconde-se envergonhado num canto. Será tudo isto resultado da falta de pessoal? Há com certeza falta de gente qualificada ou de quem saiba dirigi-la, mas, tudo somado, vimos umas 20 pessoas a trabalhar: na bilheteira, na vigilância, nos balneários, ou até a varrer as folhas secas do chão.
Se o problema da Caldeira Velha fosse a penúria orçamental, talvez o pó dourado que recobre o verso das folhas do Pityrogramma calomelanos pudesse dar uma ajuda. Mas nem tudo o que luz é ouro, e fora dos contos de fadas nenhuma planta é capaz de produzir o metal precioso. Porém, mesmo que não enriqueça quem decida cultivá-lo, este feto neo-tropical, visto por trás ou pela frente, é um dos mais bonitos que conhecemos. Originário da América Central e do Sul, a sua beleza serviu-lhe de passaporte para muitas regiões tropicais e subtropicais da África, Ásia e Oceania, onde conseguiu naturalizar-se com maior ou menor sucesso. Na África do Sul, por exemplo, frequenta bermas de estrada e outros sítios perturbados e mais ou menos pedregosos na metade leste do país, em geral na proximidade de lugares habitados, não se esperando que venha a ter comportamento invasor problemático. Já na Ásia e em certas ilhas do Pacífico ele não parece ter usado de igual parcimónia, e as notícias são bem menos optimistas. Nos Açores, onde está assinalado desde 1907, foi até hoje visto em São Miguel, Faial e Terceira, mas permanece muito raro e talvez já não exista no Faial. As temperaturas moderadas do arquipélago não devem ser favoráveis à disseminação de um feto que preferirá ambientes mais cálidos. Na Caldeira Velha instalou-se junto à fonte de água quente, sobre um solo borbulhante e instável que parece a tampa de uma panela de pressão, e por entre os vapores de enxofre que nos coçam o nariz e embaciam a vista.
O Pityrogramma calomelanos é um feto de tamanho médio. As suas frondes arqueadas, que se dispõem em tufos, têm pecíolo negro, comprido, e lâminas foliares bipinadas, de formato lanceolado, com uns 40 cm de comprimento máximo (no seu continente de origem é capaz de duplicar esta marca). A sua elegância e simetria, ajudadas pela cor verde brilhante, são irrepreensíveis.
Ao contrário do P. calomelanos, o P. ebenea, que é algo maior do que o seu congénere, não parece buscar só ambientes de sauna. Vimo-lo em dois pontos a caminho da lagoa do Fogo, e é de supor que a sua expansão em São Miguel esteja apenas no início.
1 comentário :
O feto dourado é surreal. Oxalá não se perca.Obrigada pela mostra.
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