04/09/2018

Lábios pulcros


Cheilanthes pulchella Willd.


Noutras eras geológicas, há seis ou sete milhões de anos, este feto terá existido na Europa e no norte de África, mas foi expulso pela clima progressivamente mais árido e frio da última etapa do Mioceno, com o mar Mediterrâneo secando quase por completo e convertendo-se num deserto salobro. Refugiou-se nas Canárias, onde ficou a salvo das glaciações que atingiram o continente europeu, e onde hoje está presente em cinco das sete ilhas: Grã-Canária, Tenerife, El Hierro, La Palma e La Gomera. Com base num único exemplar de herbário de origem duvidosa, colhido em 1810 talvez na província galega de Orense, várias vezes se alegou a sua existência na Península Ibérica, mas esse improvável encontro (erro de atribuição ou canto do cisne?) nunca se repetiu. A sua presença na Madeira, que seria menos estranha, também está minada por dúvidas, e por isso é apropriado considerar o Cheilanthes pulchella como um endemismo canário, pese embora a sua presumível origem noutras paragens. Antes de migrar para as Canárias terá produzido descendência, desse modo perpetuando os seus genes no continente europeu: juntamente com o C. maderensis, é um dos progenitores do C. guanchica, um feto que em Portugal continental ocorre apenas na serra de Mochique.

O epíteto pulchella pode, em português refinado, traduzir-se por pulcro, e é forçoso admitir que este Cheilanthes pulchella suplanta em beleza qualquer um dos seus cinco congéneres em territónio nacional. As suas folhas têm um desenho mais elaborado, executado por uma mão mais firme, sem as rugosidades e hesitações que maculam as outras espécies. São também maiores, amiúde com porte erecto e crescendo a descoberto, tendo assim melhores oportunidades para se mostrarem do que as que se escondem em fendas de rochas.

O Cheilanthes pulchella dá-se bem com a secura, mas não tolera o frio. Nas Canárias vive sobre rochas vulcânicas, em lugares onde a chuva quase nunca cai; as brisas que pela manhã sopram do mar parecem trazer-lhe humidade que baste. Em Tenerife, nas bermas da estrada que sobe para a montanha do Teide, começa a ver-se a uns mil metros de altitude, num solo caótico formado por calhaus e fragmentos de rocha que dir-se-ia terem sido passados numa trituradora. O coberto arbóreo, que se diria impossível em tal substrato e em tais condições de secura, é composto exclusivamente por pinheiros-das-Canárias (Pinus canariensis). Ao Cheilanthes pulchella juntam-se alguns raros arbustos e outros dois fetos xerófilos, Notholaena marantaea subsp. subcordata e Cosentinia vellea, na tarefa ingrata de pincelar de verde esta paisagem em tons de castanho e cinzento.

2 comentários :

bea disse...

São uns fetos bem esquisitos esses, com gosto por aridez e torrões ásperos. Mas que se há-de fazer, cada espécie é uma.
Quanto ao guanchica, oxalá tenha sobrevivido ao fogo na serra de Monchique.

Carlos M. Silva disse...

Olá viajantes.

Uma belíssima história de um feto sob a história da Terra, ou a dramática história (geológica) da Terra com um feto como viajante.
Parabéns pela continuidade geográfica que vão dando a este espaço.

Abraço.