29/01/2020

Folhas de cinza

Ao contrário de alguns animais, as plantas adoptam épocas precisas de procriação. As que são perenes repetem, ano após ano, no mesmo mês, o ciclo de floração e gestação de sementes; as anuais, por sua vez, parecem ter inscrito nos seus genes um mecanismo de relógio, cujo funcionamento transmitem aos descendentes e que os desperta para florir mais ou menos nas mesmas datas dos progenitores. Há, claro, excepções a esta programação: plantas cujo período de floração é tão longo que parecem estar sempre em flor; ou plantas que só florescem uma vez na vida, para logo morrerem. Mas a maioria das espécies botânicas parece ter aprendido que manter uma rotina tem algumas vantagens, uma vez que a parceria com os polinizadores exige sintonia e fidelidade mútua, e o clima adequado à floração também costuma recorrer na mesma época do ano.



Contudo, este hábito de confiar nos outros, sejam polinizadores ou o ambiente, tão favorável às plantas em habitats estáveis, pode ser-lhes muito prejudicial em locais desassossegados. Não supreende, por isso, que algumas plantas de vez em quando desrespeitem a tradição, lançando flores quando deveriam já estar a hibernar. É um desatino para os guias de campo que indicam os meses usuais de floração, mas é também a sorte grande para quem quer fotografar plantas. Foi o caso deste lindo gerânio de folhas cinzentas, com flores brancas adornadas com veios e anteras de cor púrpura, que vimos em Agosto no planalto de La Larry, nos Pirenéus aragoneses.


Geranium cinereum Cav.


A sua época de floração não costuma ultrapassar o meio do Verão, mas conseguimos vê-lo ainda em flor neste pasto rochoso de montanha, acima dos 1600 metros, onde, sob um sol inclemente, vacas, cavalos e muitos turistas aproveitavam os arroios e as cachoeiras, e marmotas engraçadas assomavam vigilantes dos seus túneis (fresquinhos, supomos), empertigadas como cachorros em pé. O Geranium cinereum é nativo dos Pirenéus, e foi descrito pelo botânico espanhol Antonio José Cavanilles (1745-1804), a quem foi dedicado um narciso.

22/01/2020

Fonte seca


Asplenium fontanum (L.) Bernh.


Os erros em nomes botânicos têm uma história ilustre que remonta pelo menos a Lineu. O pai da taxonomia botânica baptizou plantas de todo o mundo, originárias de lugares que, nesse tempo de viagens demoradas, nunca pôde visitar. Recebidas as amostras, tratava de lhes dar nome tendo em conta as indicações de quem as enviava. Uma troca de etiquetas, a tresleitura de algum apontamento menos legível, o equívoco de se tomarem por nativas plantas cultivadas — tudo isso, em diferentes ocasiões, levou por exemplo a que plantas europeias assumissem identidade sul-americana ou vice-versa. São muito conhecidos os casos da Scilla peruviana, que não é do Peru mas sim de Portugal e Espanha, e do Cupressus lusitanica, de origem mexicana mas descrito (pelo inglês Philip Miller) a partir de exemplares cultivados em Portugal na mata do Buçaco.

Menos conhecidos são os nomes que dão uma ideia errada do hábito ou ecologia da planta. Um exemplo do primeiro tipo é dado pela Genista florida, que anda longe de ser a espécie do seu género com floração mais abundante. Para ilustrar o segundo tipo de erro, convocámos um feto a que Lineu chamou Polypodium fontanum e que, como mandam as regras da nomenclatura botânica, manteve o epíteto específico ao ser transferido para o género Asplenium. Uma tradução possível do nome seria feto-das-fontes; mas, embora haja muitos fetos que gostam de fontes ou de paredes ressumantes, o Asplenium fontanum decididamente não é um deles.

Com frondes estreitas de 10 a 15 cm de comprimento, dotadas de pecíolo curto e dispostas em tufos por vezes densos, e facilmente reconhecível pelo recorte das pínulas e pelo encurtamento muito acentuado das pinas inferiores, o Asplenium fontanum vive em fendas de rochas calcárias, por regra em sítios frescos onde a luz solar não incide directamente. Distribui-se por zonas montanhosas da Europa (Alpes, Pirenéus, maciço do Jura) e do norte de África (cordilheira do Atlas em Marrocos), a altitudes moderadas, maioritariamente entre os 500 e os 1500 metros, revelando especial predilecção pelos grandes vales cársicos. Fotografámo-lo no fabuloso vale de Añisclo, nos Pirenéus aragoneses, no talude de uma estrada que seria pecado não percorrer a pé.

15/01/2020

Águas salobras


Paul da Praia da Vitória, ilha Terceira
Que têm em comum a Praia da Vitória, na ilha Terceira, e a Fajã dos Cubres, em São Jorge, além de ambas se situarem em zonas costeiras do grupo central dos Açores? A primeira é uma cidadezinha aprumada, com ruas pedonais em calçada portuguesa preenchidas com lojas, cafetarias, bancos, restaurantes, pequenos hotéis, igrejas, jardins e um mercado, rematada por um passeio à beira-mar decorado com azulejos poéticos e com vista para um movimentado porto de recreio. A segunda, servida por uma única loja polivalente que faz de café-restaurante-mercearia, resume-se a uma dúzia de casas térreas ocupadas sazonalmente, de onde apenas sobressai a torre da igreja. Mesmo que tenhamos descido à fajã de automóvel e várias dezenas de turistas tenham feito igual, as impressionantes falésias revestidas de verde e a escala diminuta da presença humana dão uma medida da nossa fragilidade e induzem uma sensação de aventura e isolamento. A Praia da Vitória, por contraste, sugere uma vida de conforto burguês isenta de inquietações.


Lagoa da Fajã dos Cubres, ilha de São Jorge
Acontece que nas duas localidades existem lagoas de águas salobras, um tipo de habitat que de resto está quase ausente dos Açores e que serve de abrigo a uma interessante vida aquática. O Paul da Praia da Vitória, apesar de aparentemente separado do mar por extensos aterros, uma estrada e várias estruturas portuárias, ainda mistura água doce com salgada, pois a água das marés chega-lhe pelos fundos aproveitando a porosidade do terreno. Já a lagoa das Fajã dos Cubres está apenas a 50 metros do mar, sendo essa a largura, no ponto mais estreito, da língua de terra e detritos rochosos que lhe define o contorno. Embora o Paul da Praia esteja muito artificializado, nas suas margens ocorre uma das espécies nativas mais raras dos Açores, a ciperácea Bolboschoenus maritimus, que em todo o arquipélago só existe na Terceira e, nessa ilha, só na Praia da Vitória. E há no Paul pelo menos duas espécies vegetais em comum com a Fajã dos Cubres: o Juncus acutus, que forma grandes tufos de folhas agressivamente pontiagudas; e a Ruppia maritima, uma planta submersa de distribuição cosmopolita, semelhante a uma gramínea, que nos Açores só existe na Terceira e em São Jorge, precisamente nestes locais.


Ruppia maritima L.


Ao contrário do que pode sugerir o epíteto maritima, esta Ruppia não vive no mar, mas apenas em zonas costeiras tais como estuários, lagoas e salinas. É um habitat por natureza descontínuo e daí que a planta tenha uma distribuição muito fragmentada. No entanto, ela está espalhada por todos os continentes habitados, desde regiões de clima fresco até zonas tropicais, conjecturando-se que tenham sido as aves migratórias, ao comerem os peixes que engolem os frutos da planta, o principal veículo da sua disseminação. Planta de ciclo anual mas florescendo e frutificando ao longo de praticamente todo o ano, não parece ter dificuldade em manter largos contigentes nos locais onde está instalada. Na lagoa da Fajã dos Cubres forma extensas pradarias submersas, e de facto ela é aí a única planta que vive inteiramente na água. Uma observação atenta permite detectar os típicos caules articulados, mas para inspeccionar inflorescências e frutos é indispensável pescar algum exemplar (que depois deverá ser devolvido à água). Os frutos são pequenas drupas dotadas de pedúnculos muito longos (as fotos em baixo mostram uma inflorescência); noutras espécies do género como a Ruppia cirrhosa, mas não na R. maritima, esses pedúnculos costumam contorcer-se em espiral.

Os mamíferos que vivem no mar têm de vir à tona para respirar. Não é esse exactamente o caso da Ruppia, mas esta planta só consegue reproduzir-se porque literalmente cria bolhas de ar. Tais bolhas envolvem as anteras, transportando o pólen para a superfície. Em seguida o pedúnculo cresce, e com isso os estigmas assomam também à superfície para receberem o pólen. Noutros casos, em que a autogamia é prática corrente, a inflorescência prescinde da ascensão à superfície e tudo se passa na intimidade de uma bolha de ar que envolve anteras e estigma de uma mesma flor.

P.S. Para algumas importantes correcções a este texto, leia-se o comentário aqui deixado por Duarte Frade.


Ruppia maritima L.

08/01/2020

Chicória elegante

Durante alguns anos, entre Janeiro e Junho, visitámos com alguma regularidade o centro do país. Habituados à cidade, desconhecíamos algumas das serras da Estremadura, lugares privilegiados para a flora de solos calcários. Foi ali que começámos a interessar-nos pelas plantas de um modo menos informal, e foi também por lá que vimos pela primeira vez algumas das espécies herbáceas mais bonitas da flora nacional. Mas escapou-nos sempre a asterácea que hoje vos mostramos, planta perene que gosta de clareiras de matos e encostas muito secas com solo calcário e argiloso, e cuja distribuição em Portugal se restringe a um local no Ribatejo.


Catananche caerulea L.


Por cá, ela floresce entre Maio e Junho, mas encontrámo-la em flor, e em populações abundantes, durante uma visita em Agosto aos Pirenéus. Na imagem abaixo dos montes de Plana Canal, nos Pirenéus aragoneses, adivinha-se a estrada, denunciada por uma linha mais ou menos horizontal, em cuja berma vimos pela primeria vez a C. caerulea.



As inflorescências lembram as da chicória, mas o formoso invólucro de brácteas transparentes (veja a 2ª foto acima) distingue-as sem dificuldade.

No sudeste de Portugal ocorre outra espécie de Catananche, igualmente rara, a C. lutea, que nunca vimos mas que é frequente na região mediterrânica. É anual e parece mais exigente quanto ao tipo de habitat pois apenas são conhecidos registos da sua presença em afloramentos de rocha ígnea com solo básico, ocorrendo em populações pequenas. Isso é surpreendente tendo em conta que esta espécie tem um esquema de dispersão de sementes muito habilidoso. Senão vejamos.

Cada planta produz dois tipos de frutos (aquénios): uns subterrâneos, com origem em flores que nascem nas axilas das folhas da roseta basal entre Fevereiro e Abril, e que germinam no local onde a planta mãe morre; e outros aéreos, que estão prontos para serem disseminados pelo vento entre Abril-Maio e que resultam da polinização ou auto-fertilização das inflorescências aéreas (com hastes florais elevadas). Cada tipo de aquénio parece ter uma intenção distinta relativamente ao processo de disseminação desta espécie, diferenças que naturalmente obrigam a adaptações morfológicas. Segundo E. Ruiz de Clavijo, autor de um artigo que vale a pena ler na íntegra, os aquénios subterrâneos são uma reserva da planta pronta para germinar no solo, e fazem-no rapidamente. Asseguram que a espécie persiste no terreno onde a planta mãe foi bem sucedida. Os aéreos, cuja dispersão se faz pelo vento e se espera que viajem para longe, permitindo a colonização de novos habitats, têm um prazo de validade maior e o papus (o pára-quedas da semente) é mais bem desenvolvido.

Esta estratégia reprodutiva não é apanágio da C. lutea (veja-se por exemplo a Centaurea melitensis, cujos capítulos sésseis e rentes ao chão têm flores cleistogâmicas, ou a Emex spinosa). No caso da C. lutea, porém, os capítulos na base também abrem, e o processo é mais sofisticado pois há vários tipos de aquénios aéreos e subterrâneos, com diferenças subtis que dependem da posição da flor no capítulo.

Se o leitor tiver tempo, não deixe de espreitar imagens de outras espécies de Catananche do norte de África, decerto parentes e, quem sabe, origem do carácter polimorfo dos frutos da C. lutea.