20/02/2020

Parasita graciosa

Orobanche gratiosa (Webb) Linding. [= Phelipanche gratiosa (Webb) Carlón & al.]
Para quem vive de rendimentos bem ou mal adquiridos, uma vida de sol e praia nas Canárias parece a materialização de um sonho. A chuva é um fenómeno quase desconhecido, a temperatura amena nunca exige um agasalho extra, e os dias, mesmo quando são curtos, nunca são demasiado curtos. É nestas ilhas que entendemos que uma vida sem horários nem compromissos é que é a verdadeira vida, e como é violenta e contranatura a simples ideia de trabalhar.

Há só a chatice de o mundo deixar de funcionar se o ócio passar a ser o modo de vida de toda a gente. Mesmo numa ilha vocacionada para o veraneio a tempo inteiro é preciso que alguém limpe o quarto, ponha o pequeno-almoço na mesa, mantenha restaurantes e supermercados abertos e, de um modo geral, torne possível a existência civilizada e higiénica a que julgamos ter direito. Para cada cigarra ociosa, quantas infatigáveis formigas cirandam à sua volta?

Fica assim estabelecido que as Canárias são ilhas ideais para o dolce far niente, desde que tal ocupação seja apenas o privilégio de poucos. Se procurarmos um paralelo no mundo vegetal, encontramos, nas mesmas ilhas, certas plantas que nada fazem pelo seu próprio sustento, preferindo alimentar-se à custa de outras. Chamam-se elas plantas parasitas — um adjectivo que, pela sua rudeza, evitamos aplicar às relações humanas. Dentro dessa categoria, o género Orobanche é o mais populoso do arquipélago, contando com doze espécies, três das quais endémicas. À mesma família pertence a formosa parasita amarela que encontrámos nas dunas de Lanzarote.

Uma das espécies endémicas é a Orobanche gratiosa. Adaptando o nome vernáculo que por cá costumamos dar às espécies do género, poderíamos talvez chamar-lhe erva-toira-graciosa. Contudo, isso seria um erro: o epíteto gratiosa não se refere à presumível beleza da planta mas sim à sua ocorrência na Graciosa, a mais pequena ilha habitada do arquipélago canário. O nome correcto da planta (que ocorre também em Lanzarote, Fuerteventura e Grã-Canária) seria pois erva-toira-da-Graciosa.

A Orobanche gratiosa vive em solos arenosos costeiros, aparecendo também em locais pedregosos a baixa altitude. Apresenta hastes ramificadas, de 15 a 30 cm de altura (por vezes mais), e as flores são de um tom lilás muito pálido (a O. ramosa, espécie aparentada que tembém ocorre nas Canárias, tem flores mais escuras). A sua época de floração oficial estende-se de Dezembro a Março, mas por altura da nossa visita, no final de Dezembro, ela permanecia invisível no seu habitat dunar usual. O único exemplar que avistámos morava, talvez por engano, no Barranco de Tenegüime, a uns 4 km da linha de costa e à vertiginosa altitude de 150 metros, o que é de todo desaconselhável para a saúde da planta.

15/02/2020

Flores de madeira


Ceropegia fusca Bolle


Há pouco mais de dois anos, uma revisão do género Ceropegia, nomeado por Lineu em 1753 e que abrigava cerca de 220 espécies, reuniu sob essa designação mais de 700 espécies, nativas da África, Ásia, Austrália e Canárias. Uma arrumação na mesma gaveta em tão grande escala soa-nos inusitada numa época em que os estudos genéticos apontam mais frequentemente para a independência, e decerto muitos descritores de taxónes não apreciaram o almagamento. Para os que se apegam aos detalhes, como coleccionadores ávidos, algumas destas espécies não parecem sequer próximas, quanto mais primas. Ora veja o leitor estas imagens para formar a sua opinião: F1, F2, F3, F4, F5, F6, F7, F8, F9, F10. Vasta informação sobre a morfologia destas plantas é aduzida pelos autores da proposta de unificação num só género, embora dividido em várias secções, e pode ser lida aqui.

Que lhe parece? Notou concerteza semelhanças: as flores tubulares ciliadas de pé curto, com um topo formando um chapéu de bispo, um guarda-chuva, uma lanterna ou uma gaiola; os talos suculentos, enroscados em jeito de trepadeira; e as folhas grandes e verdinhas, nascendo em pares opostos. Mas há também muitos pormenores diferentes nas flores, sejam cores ou penachos que, dizem os estudiosos, são consequência de ajustes com os polinizadores — em geral uma grande diversidade de moscas que, atraídas por aromas e tons, ficam momentaneamente enjauladas nas flores e as polinizam enquanto buscam uma saída (como descrito aqui).

Contudo, as espécies de Ceropegia endémicas das Canárias (a Ceropegia dichotoma em Tenerife, La Palma, El Hierro e La Gomera; e a Ceropegia fusca, acima ilustrada, em Tenerife e Grã-Canária) não encaixam bem neste formato. Não são trepadeiras e investiram mais nos talos cilíndricos, engrossando-os em rolos erectos e fazendo-os nascer directamente do solo até cerca de 1 metro de altura; e reduziram as folhas a apêndices sésseis, finos, caducos, de 2-5 cm de comprimento e margens revolutas, que surgem no inverno. Supõe-se que sejam o resultado da adaptação ao habitat que colonizaram nessas ilhas: seco, rochoso, de solo ralo, e com exposição prolongada ao sol e ao calor.

05/02/2020

Giroflando por Lanzarote


Matthiola bolleana Webb ex Christ


Entre as lengalengas ou cantigas infantis que todos os portugueses de tenra idade foram ensinados a trautear avulta o Jardim da Celeste. Que nos conste, é só aí que aparecem giroflé e a sua variante giroflá, palavras que não têm qualquer uso ou significado em português corrente, embora alguns dicionários apontem girofle (sem acento) como sinónimo de cravo-da-Índia. Não seria inadequado que numa cantiga sobre um jardim as palavras desconhecidas designassem plantas, mas é só num idioma que agora as crianças não aprendem, o francês, que se revela toda a verdade sobre o giroflé. Envolve prévia operação de mudança de género, o que daria ao assunto sobeja relevância em contexto educativo. Transmudado para giroflée, palavra feminina que deve pronunciar-se carregando bem no erre, é nome de umas tantas plantas crucíferas de flores cor-de-rosa, amarelas, brancas ou vermelhas, plantas essas que por cá conhecemos como goivos. O verbo giroflar, neologismo que faz aqui a sua estreia pública, descreve pois o acto de observar goivos, por nós praticado com regularidade durante uma visita a Lanzarote.

A Matthiola bolleana, ou goivo-das-Canárias, é frequente em Lanzarote (também em La Graciosa) e, mais ainda, no sul de Fuerteventura, em dunas ou zonas pedregosas a baixa altitude. É rara nas restantes ilhas do arquipélago, e está ausente de El Hierro e de La Gomera. Trata-se de uma pequena planta perene, de 10 a 30 cm de altura, ramificada desde a base, com folhas geralmente inteiras, lineares e obtusas. As flores perfumadas, dispostas em hastes que pouco excedem o comprimento das folhas, são quase sésseis, com pétalas de uns 15 mm de comprimento, onduladas, de cor rosa-violeta mas brancas na base. Tem evidentes semelhanças com a espécie mediterrânica Matthiola fruticulosa, mas as diferenças (na forma das folhas, na coloração das pétalas, no porte geral) não são menos óbvias, e por isso é algo exagerado despromover a M. bolleana, como fazem certos autores, a simples variedade da M. fruticulosa.

À Matthiola bolleana estão associados importantes pioneiros novecentistas no estudo da flora canarina. Quem a baptizou foi o inglês Philip Barker-Webb (1793-1854), autor, com o francês Sabino Berthelot (1794-1880), de uma monumental L'Histoire Naturelle des Îles Canaries, publicada em nove volumes entre 1836 e 1844. Em nenhum desses volumes, porém, se menciona a M. bolleana, cuja primeira descrição só veria o prelo em 1887 por mão do suíço Konrad H. Christ (1833–1933), que realizou um estudo dos escritos não publicados de Webb. O epíteto refere-se ao naturalista alemão Carl August Bolle (1821-1909), que colheu a planta na península de Jandía, em Fuerteventura, aquando da sua primeira visita às Canárias, em 1852. Ao mesmo Carl Bolle se devem dezenas de descrições de novas espécies da flora do arquipélago, em especial das ilhas menos estudadas até então: Lanzarote, Fuerteventura, El Hierro e La Gomera.