Azevinho da Madeira (e das Canárias)
Por que razão quase não há florestas planas? A pergunta refere-se apenas àquelas florestas ou bosques que temos frequentado na nossa limitada experiência de naturalistas amadores — e que, se descontarmos as nossas insistentes visitas às ilhas atlânticas, são quase todos na Península Ibérica. A resposta óbvia parece ser que é nos lugares planos que estão os solos de maior aptidão agrícola, tendo por isso o arvoredo aí sido sacrificado, há já longos séculos, às necessidades de sobrevivência da nossa espécie, mantendo-se apenas os bosques lineares que acompanham rios ou delimitam parcelas de diferentes proprietários. Os pinhais que ocupavam as grandes extensões arenosas e sem préstimo agrícola do litoral centro, e que foram quase integralmente destruídos nos grandes incêndios de 2017, eram talvez, no nosso território, os derradeiros exemplos de florestas planas.
Quando a orografia é de tal modo acidentada que os terrenos planos são poucos ou nenhuns, o engenho humano viu-se obrigado a esculpir encostas em socalcos para abrir espaços de cultivo, como sucedeu no vale do Douro ou na metade sul da ilha da Madeira. O trabalho de gerações foi fazendo com que da vegetação original pouco restasse. No Douro, o abandono das vinhas causado pela filoxera no final do século XIX permitiu que em alguns montes o coberto arbóreo se regenerasse naturalmente; na Madeira, o arvoredo das vertentes viradas a sul é, nas menores altitudes, quase todo exótico, com predomínio de eucaliptos e acácias e alguns simpáticos castanheiros amenizando o panorama.
Assim, na Madeira, nem antes do povoamento havia florestas planas. O Paul da Serra, único local plano de extensão significativa, mas de clima agreste e situado a uma altitude média de 1500 metros, era apenas revestido por uma vegetação arbustiva de urzes, piornos e zimbros. Caminhar numa floresta madeirense, fosse ela exótica ou nativa, sempre obrigou a vencer desníveis de respeito, e nunca foi actividade para indolentes ou preguiçosos — até que as levadas tornaram possível caminhar pela floresta a uma altitude praticamente constante, mas sempre com a noção de acima e abaixo desse patamar haver muita floresta fora do nosso alcance.
A laurissilva da Madeira, ocupando boa parte do norte da ilha e algumas zonas de altitude elevada da metade sul, não é homogénea. Aquela por onde serpenteiam as levadas mais populares, por isso mais visitada por turistas, é a laurissilva do til (Ocotea foetens), muito húmida, quase sempre enevoada. Mais abaixo, e na vertente norte descendo quase até à costa, desenvolve-se, sobre solos menos profundos, a laurissilva do barbusano (Apollonias barbujana), marcada por um regime mediterrânico de secura estival. A zona de transição entre as duas ronda os 500 metros de altitude. O facto de cada uma delas ser designada pela espécie arbórea dominante não significa que nessas florestas não ocorram outras árvores. Há até grande diversidade delas, em geral lauráceas ou outras perenifólias de folhagem semelhante, que o principiante tem dificuldade em distinguir. Desse elenco arbóreo fazem parte os azevinhos, de que se contam na Madeira duas espécies: Ilex canariensis (nas fotos), endémico da Madeira e das Canárias, característico da laurissilva do barbusano; e Ilex perado subsp. perado, endémico da Madeira, semelhante ao azevinho açoriano mas de folhas maiores, morador na laurissilva do til e também, ocasionalmente, dos cumes escarpados na cordilheira central da ilha.
O Ilex canariensis é uma árvore dióica de não mais que 6 metros de altura, com flores brancas de quatro (às vezes cinco) pétalas reunidas em inflorescências axilares, e frutos que se tornam vermelhos ao amadurecer. As suas folhas são menos brilhantes e menos arredondadas do que as do seu congénere (e conterrâneo) de maiores altitudes. Floresce entre Maio e Junho e os frutos amadurecem no Inverno, razão pela qual — a exemplo do que sucedeu no continente com o azevinho comum (Ilex aquifolium) — os raminhos dos indivíduos femininos foram tradicionalmente usados como enfeite natalício.
As fotos são da freguesia do Seixal, na Madeira, onde vários trilhos florestais partem do vale da ribeira e ascendem rapidamente aos píncaros da ilha. Para quem tiver olhar instruído e fôlego que baste, é um modo de, num passeio curto, conhecer as duas principais faces da laurissilva madeirense.
2 comentários :
Obrigado pela dica, Paulo. Provavelmente as pernas é que já não dão para fazer o percurso. Mas lá que gostava de o fazer um dia, disso não tenho dúvidas. Abraço.
Se precisar de indicações mais exactas, Francisco, é só pedir. Mas acho que a prioridade na Madeira deve ser percorrer uma das levadas que entram na laurissilva: Folhadal, Caldeirão Verde, Ribeiro Frio e várias outras - são todas deslumbrantes, mas convém escolher uma época do ano em que a afluência turística seja moderada e já haja um bom número de plantas em flor (talvez Junho seja a melhor altura). A laurissilva do noroeste da ilha (Seixal, Chão da Ribeira, Ribeira da Janela) é menos cénica, mas lá é fácil de encontrar o mais bonito feto endémico da Madeira, Arachniodes webbiana, que parece ser muito raro no resto da ilha.
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