16/03/2022

Cardón de Jandía

A ilha de Fuerteventura é a mais antiga do arquipélago das Canárias, com cerca de 22 milhões de anos. A idade destas ilhas diminui de este para oeste, tendo El Hierro apenas 1.2 milhões de anos. Por isso, talvez não seja ousado imaginar que Fuerteventura nos mostra o futuro das outras ilhas das Canárias. Fuerteventura também já foi verdejante, e teve picos altos e frescos, mas a chuva que agora por vezes ali cai flui sem uso para o oceano por não haver vegetação que a retenha. A erosão ao longo de milhões de anos aplanou a ilha, enquanto criava extensas dunas e praias de areia fininha, e arruinou a floresta de montanha, os rios e o solo fértil de outrora. Restam em Fuerteventura sobretudo plantas de porte baixo, resistentes ao calor e à secura; e vastas regiões áridas, habitadas por uma ou duas espécies de falsos cactos.

O primeiro exemplar que vimos de Euphorbia handiensis, endemismo da Península de Jandía, estava guardado por uma cabrinha. Mal afastámos o olhar, prosseguiu com o paciente mordiscar da base da planta. Julgámos, portanto, o caso mal parado. Mas não: logo depois surgiu uma montanha cheia de pés desta eufórbia, vigorosos e sem dentadas. Era Dezembro e não estavam em flor; fosse outro o mês, e o cenário seria o de um jardim, ainda que concebido por alguém que só gosta de uma planta.



Com essa idade e esse percurso geológico, não nos surpreende que haja vários endemismos exclusivos na flora de Fuerteventura. E que, por isso, quase todo o interior da ilha, feito de paisagens vulcânicas em tons avermelhados e cinzentos, seja área protegida. Estudos conduzidos recentemente mostram que nas ilhas Canárias (como aliás também nas açorianas) há uma percentagem elevada de endemismos, descendentes de plantas herbáceas do continente, que nas ilhas se tornaram espécies lenhosas. Afirma essa investigação ser garantido que o carácter lenhoso de pelo menos 220 espécies endémicas das Canárias se desenvolveu nas ilhas, após a colonização de locais muito secos, ventosos e com pouca água. E que as eufórbias, em particular as de Fuerteventura, são dos exemplos mais eloquentes deste processo de adaptação.

Euphorbia handiensis Burchard


Em Portugal, as eufórbias são herbáceas frágeis, várias delas dependentes da água nas margens de riachos. As excepções honrosas são a Euphorbia pedroi, com distribuição restrita às arribas marítimas do Cabo Espichel, as açorianas Euphorbia stygiana e Euphorbia santamariae, e as madeirenses Euphorbia piscatoria e Euphorbia mellifera. Nas ilhas Canárias, porém, são muitas as espécies arbustivas do género Euphorbia, e outras cuja morfologia lembra a dos cactos, reminiscentes de plantas do norte de África.

3 comentários :

bettips disse...

A beleza agreste e as adaptações da Natureza. Quão entranho o que nos mostrais!

Luís Lavoura disse...

Quer dizer que a erosão ao longo de milhões de anos tende a tornar cada uma das ilhas canárias mais desértica e com menos vegetação?
Mas porque é que isso acontece? A fertilidade do solo não se renova?
Já li algures que um processo destes é responsável pela infertilidade da ilha da Páscoa (no oceano Pacífico): a ilha não recebe ventos que depositem nela poeiras vulcânicas oriundas de outras ilhas, e por isso a fertilidade do seu solo decai.

Paulo Araújo disse...

Não sei grande coisa do assunto, mas julgo que a desertificação de Fuerteventura não tem uma explicação única, embora o grau de erosão seja por certo o factor mais importante. As montanhas foram sendo desgastadas, e agora não são suficientemente altas para reter nuvens e captar humidade e chuva; e, como não há vegetação que retenha a humidade e ajude a formação de solo, cada vez mais se agrava a infertilidade. Claro que há ilhas relativamente baixas que não são desérticas nem têm falta de chuva, mas suponho que àquela latitude e tão perto de África (e do Sara) só uma orografia acidentada pode contrariar a natural tendência para a desertificação. Mesmo uma ilha tão arborizada como a a Madeira sugere isso mesmo: compare-se a vertente norte da ilha, chuvosa e verde, com a vertente sul, tendencialmente seca, e imagine-se como seria a ilha se não houvesse as montanhas a "fabricar" nuvens e chuva. Nem é preciso grande esforço de imaginação: basta visitar Porto Santo. Dito isto, não se pode esquecer o efeito do povoamento humano na vegetação das ilhas: tanto em Fuerteventura como no Porto Santo, é sabido que (séculos atrás) foram cortados os bosques que revestiam alguns cumes, até praticamente não sobrar árvore nenhuma, nem haver condições para a regeneração natural. No Porto Santo alguns cumes foram rearborizados com coníferas exóticas (sobretudo ciprestes-de-Monterey) a partir de meados do século XX, mas em Fuerteventura não há qualquer sinal de ter sido tentada coisa semelhante.