Açoriano tropical
Entre 1998 e 2001, o botânico Hanno Schaefer levou a cabo, no Faial, nas Flores e em Santa Maria, um exaustivo trabalho de campo que lhe permitiu o mapeamento praticamente completo da vegetação vascular dessas ilhas. Entre as novidades então aportadas à flora açoriana sobressaem o trovisco-macho de Santa Maria e, no extremo oposto da escala de tamanhos, um feto epífito diminuto, de poucos centímetros de comprimento, morador dos hiper-húmidos bosques de juníperos com turfeira que preenchem as cotas elevadas da ilha das Flores. Ainda que estreitamente aparentado com Grammitis marginella, feto tropical cuja área de distribuição abrange Jamaica, Costa Rica e partes do Brasil, o feto descoberto nas Flores singulariza-se pela menor pubescência das folhas, pela presença de pêlos glandulosos ao longo das margens, e pelas frondes de menor tamanho e de ápice obtuso. Estas características diferenciadoras bastaram para que o novo feto fosse oficialmente reconhecido como endémico do arquipélago, primeiro como subespécie de Grammitis marginella, mais tarde como espécie autónoma sob o nome de Grammitis azorica. Embora houvesse suspeitas da sua ocorrência noutras ilhas, até 2013 só havia a certeza da sua presença nas Flores. Nesse ano, Rui Bento Elias e Fernando Pereira encontraram dois exemplares na Terceira, ambos epífitos de Juniperus brefivolia mas em dois lugares afastados; e em 2021 os mesmos botânicos da Universidade dos Açores descobriram no Pico dois exemplares de G. azorica, também em lugares distintos. Assim, apesar de haver apenas quatro exemplares adicionais a atestá-lo, sabe-se hoje que a G. azorica vive em pelo menos três ilhas dos Açores: Flores, Terceira e Pico — as mesmas onde está assinalado o único outro feto da família Grammitidaceae na flora açoriana, Ceradenia jungermanioides (foto em baixo).
Estes dois fetos açorianos de ascendência caribenha são fáceis de distinguir mesmo a olho nu: a Ceradenia jungermanioides tem as frondes mais estreitas, compridas e hirsutas, enquanto que as da Grammitis azorica apresentam margens conspicuamente debruadas a negro. Esse é aliás um carácter distintivo do género Grammitis, que já abrangeu centenas de espécies mas foi em anos recentes drasticamente reduzido, cifrando-se em pouco mais de 20 espécies: a maioria das que se mantiveram exibe folhas com margens sublinhadas a traço preto, como se vê nestes exemplos.
As latitudes a que estão situadas as ilhas, e as temperaturas moderadas que nelas se sentem, não autorizam que se chame tropical à floresta húmida açoriana. No entanto, a humidade exacerbada, a abundância de epífitos (não só fetos e musgos, mas também plantas com flor), o solo encharcado e movediço, a profusão de grandes fetos no sub-bosque — tudo isso cria uma ambiência que talvez só encontre paralelo nas florestas tropicais do Novo Mundo. Não será apenas a menor distância para o continente americano a explicar que estes fetos da familia Grammitidaceae tenham colonizado os Açores mas não a Madeira nem as Canárias. É que são muito poucas as afinidades entre a laurissilva da Madeira (e das Canárias) e a floresta endémica dos Açores — à qual, e também pela circunstância de a árvore dominante ser uma conífera, é por isso inapropriado chamar laurissilva, como muitos autores fazem.
Na 3.ª edição (de 2021) do seu livro Flora of the Azores — A Field Guide, H. Schaefer diz da Grammitis azorica ser provável que ela venha a extinguir-se nos próximos anos. Os escassíssimos exemplares que têm sido encontrados reforçam a ideia de que a planta tem grande dificuldade em reproduzir-se, e é também sabido que o desenvolvimento de um único indivíduo maduro, com produção regular de frondes, é um processo que demora anos, e que só pode desenrolar-se em habitats isentos de perturbações. No artigo de 2001 em que reportava a descoberta da planta nas Flores, Schaefer informava ter apenas encontrado 22 exemplares em toda a ilha. É provável que a maioria deles já não exista: à acção dos colectores sem escrúpulos, que nunca hesitam em colher os últimos exemplares de uma espécie ameaçada (sobretudo em locais onde a fiscalização é inexistente ou ineficaz), junta-se a destruição e degradação dos habitats provocadas pela abertura e alargamento de estradas nas zonas ambientalmente mais valiosas da ilha.
Pela sua inacessibilidade e por se situarem em zonas protegidas, os lugares do Pico e da Terceira onde a espécie foi descoberta têm ficado a salvo de agressões, e não há razões para supor que a alta qualidade desses habitats esteja ameaçada. Há assim uma esperança razoável de que a Grammitis azorica sobreviva nessas ilhas, mesmo quando já tiver desaparecido das Flores.