12/09/2011

Feto quebra-ossos




Dryopteris oreades Fomin

Ler os comentários dos leitores nas versões on-line dos nossos jornais valia por um tratado de psicologia social: era um mergulho a frio num mundo de pequenos e grandes rancores e de má-língua desenfreada. Já não é tanto assim desde que mandaram vir a vassoura. O resultado é que a porcaria já não entra; ou, se entra, não tarda a ser varrida. "Moderação de comentários" é como se chama a operação higiénica. Para ouvirmos bocas do mesmo quilate temos que regressar aos cafés ou aos transportes públicos.

As notícias de acidentes na montanha — envolvendo quedas ou gente que se perde — suscitavam (e ainda suscitam, posto que em linguagem menos escabrosa) uma reacção automática unânime: estes tipos da cidade metem-se por onde não conhecem e depois dá nisto; causam transtornos e perdas de tempo às equipas de socorro por pura irresponsabilidade; deviam era levar uma multa bem pesada para ver se aprendem. É curioso como os acidentes de automóvel, muito mais comuns e muito mais mortíferos, não provocam reacções semelhantes.

Sem fazer a apologia da imprudência, convém lembrar que sair dos caminhos assinalados é essencial para que os lugares se tornem parte de nós. Só assim os mapas mentais por que nos orientamos assumem contornos mais nítidos; só assim as descobertas (de um recanto, de uma planta, de uma paisagem) ganham o sabor de vitórias pessoais. Há truques que se aprendem para prevenir transtornos, há aparelhos que ajudam os nossos fracos sentidos. Mas é preciso ultrapassar o temor e desobedecer ao dedo em riste dos que nos querem domesticar.

Vem isto a despropósito do Dryopteris oreades, um feto que encontrámos na serra da Estrela num local de acesso problemático: uma fenda de rocha junto a uma plataforma de um ou dois metros de diâmetro, debruçada a pique sobre uma escarpa. Descer para a plataforma não era difícil nem particularmente arriscado; subir de volta custava mais, mas lá se conseguiu. O fotográfo não quer posar como herói, pois já houve quem cometesse feitos muito mais arrepiantes. Consta até que existe uma actividade humana (proibida na serra da Estrela desde que entrou em vigor o último plano de ordenamento) que se chama "escalada".

E essa desobediência à lei e ao bom senso foi ao menos por uma boa causa? Certamente que sim, prezado leitor: em Portugal, o Dryopteris oreades (ou feto-macho-de-altas-montanhas, como portentosamente lhe chamam Franco & Rocha Afonso) só existe, e em escassíssimo número, nos pontos mais altos das serras do Gerês e da Estrela. E os lugares onde mora são todos assim ou piores.

Deve admitir-se, contudo, que este feto tem fortes semelhanças com outros seus congéneres bastante mais comuns, como seja o D. affinis. Mas os habitats são completamente diferentes, já que o D. affinis mora em bosques caducifólios húmidos, sobre solos ricos; e o feto montanhês, mais pequeno, tem frondes esguias que não costumam ultrapassar os 60 cm de comprimento, quando as do outro chegam a atingir metro e meio. Outras diferenças: o D. oreades perde a folhagem no Inverno (período em que, em qualquer caso, estaria sepultado sob a neve), tem a ráquis muito menos escamosa, e exibe apenas de um a três soros (= agrupamentos de esporângios) no verso de cada pínula (no D. affinis esse número varia em regra entre 6 e 8).

Com um contingente lusitano tão depauperado, é bom saber que o D. oreades não é assim tão raro por essa Europa fora, embora se fique sempre por zonas pedregosas de montanha. Na Grã-Bretanha, ilha pouco afamada pelo acidentado do relevo, é mesmo tido como abundante em certas zonas.

2 comentários :

Anónimo disse...

Olá Paulo
Sendo eu 'quase só sensível' à flor (como a maioria dos insectos e das borboletas! adultos) facilmente uso o epíteto 'oh..o raio do verde,verde e mais verde) para passar ao lado. Assim perco a eventual descoberta.
Ainda bem que pendentemente ponderaste poder mostrar-nos o que é praticamente inacessível aos leigos como eu.Obrigado.
Carlos Silva

jeanne disse...

"Sem fazer a apologia da imprudência, convém lembrar que sair dos caminhos assinalados é essencial para que os lugares se tornem parte de nós."
no vosso blog, há muitas flores que não vegetais. Obrigada