Uma aventura no Jardim do Carregal
Chegou-nos à mão um texto anónimo que transcrevemos de seguida na íntegra por julgarmos ter interesse para os nossos leitores. O Jardim do Carregal guarda um património paisagístico, histórico e arbóreo que vem sendo vergonhosamente delapidado por quem governa a cidade do Porto; a situação descrita no texto é pois real, mas não subscrevemos necessariamente as opinões do seu autor.
«Perto de minha casa, do outro lado de um fluxo contínuo de trânsito fumarento, há grandes árvores que assinalam um lugar mal frequentado. Por alguma estranha razão, o lugar chama-se Jardim do Carregal. Como poderá ser jardim (interrogo-me) esse local presumivelmente infecto que a nossa esclarecida Câmara Municipal resolveu, desde 1999, expropriar em parte para outros usos (túnel rodoviário e estaleiro) e cercar parcialmente com uma vedação de zinco? Recorde-se que um jardim - ainda que, a despeito de alguns arquitectos, nele se admitam outras cores - também se chama vulgarmente espaço verde, coisa sobremodo valorizada pelo discurso político em voga. E (prosseguindo o mesmo discurso) um espaço verde é para fruição dos munícipes e outros utentes da cidade. Por isso, e porque a nossa realidade é o espelho fiel de tais discursos, os espaços verdes não se destroem, antes são acarinhados e, se possível, expandidos.
O Jardim do Carregal não será portanto um verdadeiro jardim. (Há mais exemplos do mesmo: os Jardins da Arrábida e os Pinhais da Foz não são nem uma coisa nem outra.) Se for jardim, por certo não será verde. Ainda que verde, o seu espaço não será grande. E, finalmente, haverá alguém que dele frua? Decerto que não. Os vultos suspeitos que se adivinham ao longe, entre as árvores, cumprem a sua marginalidade no lugar que lhes é próprio: em vez de fruirem (verbo que se lhes não aplica), simplesmente existem, arredados do nosso olhar cauteloso.
Nunca lá tinha entrado e não sei o que me deu para ir lá hoje. Tinha notado que, além de gente suspeita, outra categoria social frequenta o (por assim dizer) jardim, levando para tal, como salvo-conduto e protecção, um ou mais cães pela trela. Penso que talvez sejam os cães os verdadeiros fruidores do (vá lá) jardim - mas a Câmara governa para pessoas e não para bichos; e, como é óbvio, a existência de tais utentes não é razão suficiente para que o local seja preservado.
A medo, acabei por lá entrar, tão nervoso que quase era atropelado ao atravessar a rua. Que venho eu aqui fazer? Já não tenho idade para aventuras. A falar verdade, nunca tive: será que com este gesto temerário pretendo desforrar-me de uma infância sem história e sem riscos? Não levo cão pela trela nem arma com que me defenda. Conheço-me muito bem e sei que não sou um tipo suspeito. Suspeito é aquele lá ao fundo, agachado num banco: debruça-se sobre quê? Espero que não se aproxime. Ufa, ficou parado, e posso olhar à minha volta: o que vejo são árvores, de folhagem indubitavelmente verde. Disparo a máquina fotográfica que trouxe para guardar comprovativos deste meu intrépido feito. Chego a entusiasmar-me e esqueço mesmo a presença do suspeito; e, quando novamente o procuro com o olhar, verifico que estou sozinho no (digamos) jardim.
Regresso, como de um sonho, à consciência do lugar onde estou. Do outro lado da rua, no passeio, pessoas normais e respeitáveis vão passando. Gostaria de me enganar, mas sinto que me olham de soslaio e me classificam: para elas, sou indiscutivelmente suspeito. Que poderei fazer: sair a correr do jardim, agarrá-las pelos ombros, gritar-lhes, convencê-las de que sou como elas e não há nada de suspeito no meu comportamento?»
2 comentários :
from anonymous to anonymous: this is delicious!!!
Apesar de orfãs de jardineiro e de há muito não terem o regalo de um bom trato, as árvores do (vá lá) Jardim do Carregal continuam a narrar os seus dias. Há agora em abundância, para oferta aos aficionados, pinhas de pseudotsuga, com as características linguinhas atrevidas; e já se notam folhas de verde-novo na Agathis robusta (a única que conhecemos na cidade). Tranquilas, no nicho mais afastado do estaleiro de obras, só as 14 sequóias. Que os que cavam o túnel não esboroem nem tornem mais agreste o chão destas árvores, é a nossa prece. Maria Carvalho
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