13/10/2004

Visita a jardim

«Faltam quinze para as oito, e um senhor de preto, o ar muito sério, desce de um automóvel e se encaminha para o portão do Jardim Botânico. Está fechado: mas lá dentro, placidamente, um guarda explica que só abre às oito; em todo o caso quem resolve é um guarda mais importante, na portaria. Pela janela o senhor de preto consegue chamar o outro guarda, que dá a mesma informação. O senhor insiste: não tem muito tempo, seria bom se ele pudesse entrar logo.Vejo que ele conversa baixinho com o porteiro, mas sem nenhum resultado. Regulamento é regulamento - àquela hora as árvores não estão funcionando, estão em repouso.

O sol já está bastante quente, e na rua não há sombra. Para não sofrer as mesmas decepções do senhor de preto, resolvo matar os quinze minutos de espera andando pela calçada, ao longo do Jardim, vejo que ele faz o mesmo em sentido contrário. Quando as oito horas se aproximam, volto para junto do portão. O senhor de preto também. Olho o relógio. Ele também olha o relógio. Depois nós ambos olhamos o relógio do interior da portaria; indubitavelmente são oito horas. Ficamos junto ao portão. Aparece um pintor com seu cavalete, sua caixa de tintas, sua tela. Ficamos os três ali.

- Cavalheiro!
Foi o senhor de preto que falou com uma voz inesperadamente forte. O guarda nos olha.
- São oito horas!
O guarda murmura qualquer coisa, mas o senhor de preto brada:
- São oito horas no meu relógio e no seu relógio. Abra o portão!
- Já vou abrir.
- Estou reclamando meu direito! Já passa das oito horas. O portão já devia estar aberto!
O guarda faz sinal a um outro, que abre lentamente o portão. Entramos. O senhor de preto caminha em linha reta pela aléia em frente. O pintor vai para o laguinho do seringueiro com suas vitórias-régias. Perco-me em pequenos caminhos, a olhar as árvores, ando para um lado e outro e, no fim de quinze minutos vejo o senhor de preto; está sentado em um banco, na sombra, quieto, sério. (...)

Caminho. Sabiás saltam em minha frente. Cutias, caxinguelês, pardais... Ouço um arrulho. Juriti. Me distraio sonhando com uma casa em algum lugar onde eu pudesse plantar grandes árvores: marmorana, pau-rei, samaúma... Lado a lado, na frente da casa, dois paus-mulatos com seus troncos lisos, altos, esguios. Há renques de palmeirinhas brasileiras elegantes: açaí (que no Ceará chamam de juçara), paxiúba... Ando à sombra dos bambus. Aprendo que a carambola, tão ligada à minha infância, é uma árvore da China; já sabia que a manga e a jaca também vieram do Oriente. Vejo as flores surpreendentes do abricó-de-macaco. Deixo-me ir à toa para um lado e outro, sem ler esses nomes latinos.

Uma pequena coisa amarela cai no chão na minha frente. Olho para o chão, apanho a frutinha, olho para cima, vejo a alta árvore: é cajá-mirim. Encho as mãos de cajás, sigo por uma alameda chupando as frutas, alegre como um menino.

De repente, vejo, de longe, o senhor de preto. Está se erguendo do banco. Acompanho-o com a vista. Olha um instante em torno e depois caminha em direcção à saída. (...) Depois põe o carro em marcha e vai rodando lentamente em direcção à cidade. Lentamente, como se tivesse pena de ir.

Rubem Braga, Um cartão de Paris (1990)

6 comentários :

Anónimo disse...

Tão bonito!
Alguém

ManuelaDLRamos disse...

...cutia, caxinguelês, juriti...marmorana, pau-rei, samaúma (ou sumaúma), pau-mulato, açaí, juçara, paxiúba, a carambola, manga, jaca, abricó-de-macaco, cajá-mirim...

Nomes de animais e árvores com uma musicalidade que entendemos. Mas para quem não conhece estas árvores a compreensão não vai mais longe, e não entram no imaginário do nosso português. Pelo menos não entravam de todo no de António Feijó que se queixa justamente do facto do nome das árvores e flores brasileiras serem "completamente inaproveitáveis" para a escrita poética, numa carta ao seu amigo Luís de Magalhães; avesso à vida no Brasil, achava mesmo que ?as árvores e flores, que as há formosíssimas? tinham sido "baptizadas com nomes horripilantes", o que dava azo a situações hilariantes como a que ele presenciou num serão em que ouviu ler um artigo de um ?vate? brasileiro em que este chamava aos olhos de uma senhora da sociedade ?duas melindrosas jabuticabas!?. E conclui António Feijó: ?... no entanto a comparação era perfeita. As tais jabuticabas são uma espécie de amoras, mas muito maiores, retintas e luzidias. Mas a palavra, menino, é lá coisa que se diga a uma Senhora??

Anónimo disse...

Disse um dia Saramago, a propósito das dificuldades em estabelecer um acordo linguístico entre o Brasil e Portugal, que quem não entende o português de lá, ou o de cá, tem de estudar. E como vale a pena o esforço de aprender estes nomes cheios de barulhinhos e cores: podemos assim falar das árvores como de amigos!

ManuelaDLRamos disse...

Verdad! Verdad!

Anónimo disse...

Um exemplo de colaboração entre entidades:
33 TONELADAS DE MADEIRA APREENDIDAS EM ESPANHA

«A polícia espanhola anunciou hoje que deteve mais de 33 toneladas de madeira de Jacarandá-da-Bahia, espécie em perigo de extinção, no âmbito da "Operação Palo", na qual estavam implicadas seis pessoas envolvidas na comercialização de instrumentos musicais».

(...)

«Participaram na operação a Universidade Politécnica de Madrid e o Museu de Ciências Natural espanhol, ajudando a realizar análises de ADN para distinguir as espécies de madeira.

Esta espécie está incluída no Anexo I da CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Ameaçadas de Extinção) e a sua comercialização está proibida desde 1992».

A notícia completa está no Público:
http://ultimahora.publico.pt/shownews.asp?id=1205781&idCanal=96

E também pode ser lida no El Mundo:
http://www.elmundo.es/elmundo/2004/10/13/ciencia/1097664981.html

Carlos Romão

Anónimo disse...

Do livro "Árvores Brasileiras", vol. 1, de Harri Lorenzi:

mamorana = Bombacopsis glabra - Bombacaceae
pau-rei = Pterigota brasiliensis ou Sterculia striata - Sterculiaceae
samaúma = Ceiba pentandra - Bombacaceae
pau-mulato = Calycophyllum spruceanum - Rubiaceae
açaí = Euterpe oleraceae - Palmae
juçara = Euterpe edulis - Palmae
paxiúba = Iriartea ventricosa - Palmae
carambola = fruto da caramboleira, Averrhoa carambola - Oxalidaceae
manga = fruto da mangueira, Mangifera indica - Anacardeaceae
jaca = fruto da jaqueira, Artocarpus integra - Moraceae
abricó-de-macaco = Couroupita guianensis - Lecythidaceae : a flor é a "flor de Elsinore # 3"
cajá-mirim = Spondias mombin - Anacardiaceae
jacarandá-da-Baía = Dalbergia nigra - Leguminosae, Papilionoideae

Este livro tem fotos excelentes e descrições detalhadas destas árvores. É editado pelo Instituto Plantarum, São Paulo, http://www.plantarum.com.br

Maria Carvalho