25/05/2006

A fala vegetal

«Não é mistério para os entendidos que há uma linguagem das plantas, ou, para ser mais exato, que a cada planta corresponde uma linguagem. Como a variedade de plantas é infinita, faz-se impossível ao entendimento, por muito atilado que seja, captar todas as vozes de vegetais. E só os mais perspicazes entre os humanos conseguem entender a conversa entre duas plantas de espécies diferentes: cada uma usa o seu vocabulário, como por exemplo num diálogo em que A falasse em espanhol e B respondesse em alemão.

Levindo, jardineiro experiente, chegou a dominar as linguagens que se entrecruzavam no jardim. Um leigo diria que não se escutava nada, salvo o zumbir de moscas e besouros, mas ele chegava a distinguir o suspiro de uma violeta, e suas confidências ao amor-perfeito não eram segredo para os ouvidos daquele homem.

Até que um dia as plantas desconfiaram que estavam sendo espionadas e planejaram a conspiração de silêncio contra Levindo. Passaram a comunicar-se por meio de sinais altamente sigilosos, renovados a cada semana. Em vão o jardineiro se acocorava a noite inteira no jardim, na esperança de decifrar o código. Enlouqueceu.

Perdendo o emprego, as coisas não voltaram à normalidade. As plantas haviam esquecido o hábito de conversar direito. Já não se entendiam, brigavam de haste contra haste, muitas se aniquilaram em combate. O jardim foi invadido pelas cabras, que pastaram o restante da vegetação.»

Carlos Drummond de Andrade, Contos plausíveis (1981)


Cinerária (Senecio cruentus)

9 comentários :

Anónimo disse...

Uma torre de Babel, portanto.

eduardo b. disse...

Magnífico.

bettips disse...

São contos de encantar ...
e também os jardins do livro
Um Porto de Arvores, pois que "outros olhos" vêem outras coisas.

Rosa disse...

Que texto tão bonito!
E infelizmente cada vez menos gente entende a linguagem das plantas, dizem que é falta de tempo eu acho que é distração.

Anónimo disse...

Um dia contei a uma amiga que as plantas tinham sensações, que reconheciam quem as amava. Ela pôs-se a zombar e nesse mesmo dia zangámo-nos. Depois disso as plantas cá de casa rejubilaram de verdes vigorosos e algumas delas floriram prematuramente.

Anónimo disse...

Ah!! que bonito texto.E lindas as cinerárias.
Abraço

Anónimo disse...

Gostei muito. Magistral o final: «O jardim foi invadido pelas cabras, que pastaram o restante da vegetação.» ;-)
(PF Qual é a editora dos contos?)

Maria Carvalho disse...

O livro foi publicado no Brasil pela Editora Record; deve poder encontrá-lo nas Feiras do Livro. Há uma edição de 2003 (cara, para cima de 50 euros) da Nova Aguilar, também brasileira, intitulada "Prosa Seleta", que inclui o texto integral desse e de vários outros livros de contos e crónicas de Carlos Drummond de Andrade.

Analice disse...

vejo como uma metáfora da sociedade atual