09/02/2007

Vidas curtas

Na caricatura corrente, uma vida em pleno define-se pela consumação de três actos: deixar descendência, publicar um livro e plantar uma árvore. Não se sabe se a repetição de um deles pode compensar a falta de algum dos outros dois. Cada um dos três actos traduz um modo, quiçá ingénuo, de nos irmos da lei da morte libertando: ou pela memória dos familiares, ou pela inscrição do nome na capa de um livro, ou pela árvore que atravessa gerações.

A realidade, como sempre, é mais complicada. No rodopio das novidades livreiras, a imortalidade da letra impressa, para o comum dos esperançosos autores, não vai além das três ou quatro semanas; enterrados em armazéns, os livros ressuscitarão esporadicamente por ocasião das feiras, até que o pó do esquecimento os cubra de vez. Para o autor, se a sua editora cumpriu o preceito do depósito legal, restará o consolo de encontrar o seu nome no catálogo da Biblioteca Nacional.

A árvore, embora mais duradoura, útil e memorável do que a maioria dos livros, está sujeita a contingências que muito lhe encurtam a esperança de vida. Uma delas, que nos últimos anos tem estado sobremaneira activa no Porto, chama-se requalificação urbana: caracteriza-se por uma instabilidade crónica do cenário citadino, causada por requalificadores com uma ânsia neurótica de mudança igual à que aflige donas de casa ricas e desocupadas. Árvores que não encaixem no mais recente figurino, quais peças de mobiliário démodées, entram na dança dos abates e transplantes. Veja-se o caso da praça da Batalha: em 2001, à frente da escadaria da Igreja de Santo Ildefonso, abriu-se amplo terreiro de granito; mitigando a monotonia estéril da pedra, foram plantados, em dois canteiros laterais, quatro liquidâmbares e uma variedade de pequenos arbustos. Insatisfeitos com o arranjo de há meia-dúzia de anos, eis que regressam à cena os afanosos requalificadores: um dos canteiros já não existe, e com ele sumiram duas das quatro jovens árvores; seis anos foi o prazo de vida que lhes foi concedido.



Dir-se-á então que, em Portugal, quem quiser «perpetuar-se» numa árvore deverá, se puder, fazê-lo num recanto privado e não em espaço público. Mas os jardins privados nos bairros mais acolhedores do Porto (Campo Alegre, Gomes da Costa) não têm sobrevivido à mudança de gerações. Os novos ocupantes, insensíveis ao privilégio de serem proprietários de árvores adultas, mandam de pronto cortá-las, com o aval da Câmara, para que elas não atrapalhem as obras de reconstrução. Para lá dos muros da rua D. João de Castro, mesmo em frente a Serralves, são cada vez mais esparsas as silhuetas de árvores: em poucos anos, vi desaparecerem araucárias, pinheiros, lodãos, salgueiros e magnólias. À lista de baixas na vizinhança junta-se agora um rododendro no largo de D. João III: tão alto como a casa que embelezava, vivia onde agora assenta o guindaste, e era dos mais bonitos que alguma vez vi.

4 comentários :

Anónimo disse...

talvez apreciem mais a sombra do guindaste...ou então esperam que este dê frutos.

Movimento Pela Net Mais Barata disse...

As árvores são um bem precioso e limitado, infelizmente a sua escassez nada tem contribuido para alterar o comportamento das pessoas. Há causas que deviam globais!

Anónimo disse...

Fora as piadas das sombras dos guindastes, as árvores não morrerão. Elas estão mudando de lugar e como o próprio homem, adaptando-se aos novos tempos! Enquanto houver gente na terra havera árvores e livros!

bettips disse...

Quando leio "árvore abatida em..." dá-me a ideia que isto é mesmo guerra portuguesa contra ARVORES e JARDINS, canteiros e flores. Não percebo ... Abç