19/05/2011

Cilada taxonómica


Scilla ramburei Boiss.

O erro de um especialista pode levar ao registo de uma nova espécie que é de facto indistinguível de outra já anteriormente baptizada. O erro de um amador, por contraste, só confirma a inépcia do sapateiro que quer subir acima da chinela. Amador e especialista têm portanto que adoptar comportamentos distintos: o primeiro só arrisca uma opinião depois de muito ponderar; o segundo esbanja opiniões e faz currículo com elas.

É por causa desta profusão de opiniões desencontradas que alguns géneros botânicos se transformam num campo minado para quem gosta de certezas. Que as cilas (género Scilla) são uma verdadeira cilada para o naturalista amador sabíamos nós há muito tempo. Até hoje conseguimos evitá-la, mas estas fotos esperaram já um ano para sair do baú. Ou erramos, ou não falamos mais de cilas. Erremos, pois.

A cila-de-uma-folha é de tal modo comum em bosques e matagais no início da Primavera que por vezes nem lhe prestamos atenção. Com esse alheamento perdemos a oportunidade de detectar variações interessantes. Algumas cilas também primaveris mas com o escapo floral mais espigado têm não uma, mas cinco ou seis folhas. São sem dúvida de uma espécie diferente, mas que espécie será essa? Talvez Scilla ramburei — pelo menos assim julgamos das plantas aí em cima, fotografadas nas margens do rio Ferreira, em Valongo.

Acontece que, no norte de Portugal e na Galiza, foram registadas pelo menos seis espécies de Scilla com caracteres morfológicos semelhantes: S. ramburei, S. verna, S. beirana, S. odorata, S. merinoi e S. paui. A delimitação entre as diversas espécies é controversa, e já houve quem apontasse que alguns destes nomes são na verdade sinónimos. Tanto quanto pudemos entender, S. beirana e S. ramburei designam a mesma espécie, que inclui plantas geralmente mais encorpadas do que a S. verna e a S. odorata. Mas mesmo esse traço distintivo não é seguro, pois uma mesma planta crescendo em solos ricos e húmidos desenvolve-se melhor do que em lugares áridos.

A Scilla é pois um género a carecer de urgente clarificação, tarefa que talvez a Flora Ibérica venha a cumprir. Mas as incertezas taxonómicas não nos devem impedir de admirar tais plantas.

Adenda 1. Sobre a taxonomia e morfologia do género Scilla e de outros géneros aparentados (Hyacinthoides e Ornithogalum), leia-se o extenso e educativo comentário que o Prof. Rubim Almeida, da Faculdade de Ciências do Porto, teve a amabilidade de deixar neste outro post.

Adenda 2. As fotos que originalmente acompanhavam este texto correspondiam a outra espécie que não a Scilla ramburei, e por isso foram substituídas.

3 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo e Maria
Este post e os que a ele estão 'linkados'já o havia lido e com atenção,mas na altura não terei tido a clarividência de colocar um comentário/dúvidas,mas agora aqui vai.
A Scilla monophyllos conheço-a bem,cá por casa (em 'bouças');a S. peruviana tb a tenho cá por casa e nada de dúvidas,nem outras com a S. autumnale.
Acho que tb a Hyacinthoides hispanica já a fotografei na S.Estrela e tem a flor campanulada como uma híbrida que tenho por cá a que dei o nome de S. campanulata hyb. 'Rosea'),a partir,creio,do que vi num horto(on-line);tudo bem ..ou tudo mal!E a S. verna fotografei-a de Fafião para as Sombrosas.Até aqui não tenho dúvidas!A dúvida está noutra.
Em casa,Maia,e só na margem dum dos campos e na 'bouça' ao lado,e por que a voltei a fotografar este sábado,tenho uma terceira Scilla,selvagem,a que chamei S. italica mas que olhando para a deste post me parece mais similar a esta que a da S. italica,nas folhas e na espiga de flores não campanuladas.
Bate certo com a distribuição (se conhecida) desta aqui?
Já vi exemplares c/ caule de 20-30 cm de altura e normalmente tem 4 a 5 folhas,lineares,rente ao solo,longas até 20-30 cm,como me parece ser a deste post.
Era a dúvida sabendo pelo que escreveste neste post que as dúvidas são muitas.
Cumprimentos e obrigado.
Carlos M. Silva

Paulo Araújo disse...

Olá, Carlos.

As "cilas-de-muitas-folhas" são uma complicação que só gradualmente vou percebendo. É que no norte há uma que parece Scilla mas é Hyacinthoides, e que é talvez a mais frequente de todas. Trata-se do Hyacinthoides paivae. Um modo seguro de o identificar é ver (à lupa ou numa foto macro) se cada pedúnculo floral tem duas brácteas na base. Podes observar essas brácteas nestas duas fotos - 1 e 2 - tiradas há duas semanas em Aguiar de Sousa.

Abraço

Carlos M. Silva disse...

Olá
Sim Paulo, foi de uma inestimável ajuda o caractér que indicaste e as fotos que linkaste!
É mesmo essa, H. paivae; nem conhecia de nome(normal!) e por cá só nesse sítio vi em contraste com a S. monophyllos.
Não te quero ocupar em 'sciladas' mas admitia na minha ignorância que era a flor - sempre a flor e muitas das vezes não é a flor e a sua forma que separa generos -campanulada que separava Hyacinthoides (na Hispanica, na Non-scripta,,,)das Scillas,mas aprende-se sempre.
Cumprimentos e obrigado.
Se quiseres podes ver onde apliquei os teus conhcimentos.
Carlos M. Silva
NOTA: quanto ao dia 12 até pode ser que mude ideias!