28/06/2014

Colheres de sésamo



Sesamoides spathulifolia (Revelière ex Boreau) Rothm.


Porque era ainda Abril quando a vimos no topo das falésias de Cascais, as fotos não mostram as sementes desta planta. São redondas e comprimidas lateralmente como as do gergelim (Sesamum indicum L.), e sugeriram a Lineu o nome científico do género. As folhas caulinares coriáceas e em forma de colher (espatuladas) são a marca distintiva da espécie das fotos, que na Península Ibérica só ocorre, ao que se sabe, na costa portuguesa a sul do cabo da Roca (mas também existe na Córsega e na Sardenha). É perene e tem hábito prostrado, talvez para se resguardar da parcela generosa de vento que mora na praia do Abano.

Há mais duas espécies de Sesamoides em Portugal continental (Sesamoides purpurascens (L.) G. López, frequente em quase todo o país; e Sesamoides suffruticosa (Lange) Kuntze, mais rara), de ecologia um pouco diferente. As três assemelham-se nas inflorescências e têm em comum flores que exigem um laborioso exercício de identificação. Antes de o resolver connosco, aproveite, caro leitor, o excepcional detalhe fotográfico com que a Flora-on documenta esta herbácea.

A inflorescência é uma espiga com as flores posicionadas como se fossem discos patentes. Mas, e esse é o primeiro detalhe surpreendente, as flores não são simétricas. Têm um cálice de brácteas, cada uma delas de formato aproximadamente triangular, que protege um anel de pétalas brancas tão divididas que, sendo apenas cinco, parecem muitas mais: as duas superiores (que apontam para o topo da espiga) são laciniadas; as duas laterais também apresentam fendas, mas são menores; e finalmente há uma pétala inferior, quase solitária, que é inteira. Atentemos agora no anel alaranjado de 10 a 14 estruturas arredondadas, como duplos feijões: parece até que a flor já frutificou. De facto, são os estames, a componente masculina da flor, guardiã do pólen. As 5 a 7 bolinhas laranja-esverdeadas no centro do arranjo são os carpelos, que compõem a parte feminina da flor.

O fruto condiz em estranheza com a flor.

24/06/2014

Destino trocado

Ranunculus paludosus Poir.
Desconfiamos do bom senso dos taxonomistas quando um ranúnculo como este, com vincada predilecção por lugares secos sobre solos pobres, arenosos ou pedregosos, recebe o epíteto de paludosus, indicador de preferências ecológicas exactamente opostas àquelas que a planta manifesta. Em nosso socorro, vem a Flora Ibérica esclarecer que o botânico francês Jean Poiret (1755-1834), autor da combinação, não quis usar de ironia ao escolher o nome Ranunculus paludosus: as plantas por ele descritas viviam mesmo em prados húmidos, e distinguem-se de outras que hoje recebem o mesmo nome por terem hastes mais ramificadas e mais robustas. É provável, segundo a mesma fonte, que esse amalgamento tenha que ser revisto, e que o "Ranunculus paludosus" de habitats secos venha a integrar uma espécie autónoma.

As plantas que vimos na Quinta das Carvalhas, no Douro, ocupando a berma de um caminho soalheiro e pouco frequentado, não ultrapassariam os 10 cm de altura. Tratando-se de um género em que a distinção entre espécies é por vezes problemática, convém notar, para uma identicação segura, o formato heterogéneo das folhas basais, que são todas longamente pecioladas mas variam de cordiformes a profundamente divididas (foto 4); e também (ver foto 3) a densa indumentação na haste e o cálice formado por sépalas patentes (ou seja, encostadas às pétalas e não reviradas para baixo, como sucede por exemplo no R. trilobus e no R. bulbosus).

Distribuído por toda a região mediterrânica, este Ranunculus paludosus de terrenos áridos só não faz o pleno das províncias portuguesas porque o Minho, culpado de excesso de pluviosidade, fica de fora. Como sucede com a maioria dos seus congéneres (contam-se mais de trinta só em Portugal), tem uma floração temporã, com início em Fevereiro, e esconde-se logo que o calor ameaça apertar. O Verão não é tempo de ranúnculos e são outras as flores a hastear a bandeira amarela.

21/06/2014

Assobio taludo


Silene coutinhoi Rothm. & P. Silva


Entre alguns académicos há ainda o hábito saudável, e económico, de pensar com quadro e giz. Se depois precisam de levar esses rabiscos para casa, há os que, para não terem de os refazer, simplesmente fotografam o quadro como quem tira fotocópia de um rascunho. Nesse sentido, a máquina fotográfica acrescentou, ao seu papel de repositório de histórias das férias, a tarefa de apoiar a memória no trabalho. Contudo, a fotografia continua a ter a missão mais exigente de planificar fielmente objectos tridimensionais. E, para quem não gosta de viajar ou não pode fazê-lo, é útil que os fotógrafos, sejam eles vaidosos ou prestáveis, publiquem as suas obras.

A foto não tem o valor do original mas, se a técnica for apurada, é um excelente sucedâneo. Além disso, a versão digital do mundo facilmente se arquiva, já sem o antigo problema do gasto de rolos, e permite frequentemente esclarecer detalhes que nos escaparam ao vivo. Sem o registo de som ou de cheiros, a fotografia não dispensa, porém, que se cheirem as flores ou se ouça o piar da passarada. E, sobretudo, exige um referencial para que quem só conhece a imagem possa ter uma ideia aproximada do tamanho do que foi fotografado. Vejamos o exemplo desta Silene. Ao leitor parece-lhe uma planta baixa ou alta? A maioria das silenes que conhecemos são herbáceas pequenas, de flores que só são vistosas pela cor das pétalas ou porque a inflorescência é densa. Esta tem pétalas que mal se distinguem pelo tom amarelo pálido, a inflorescência é lassa e a planta tem um ar esquelético. Mas tem base lenhosa, é perene e é gigante, quando a comparamos com outras espécies do mesmo género — e este é um detalhe que não se adivinha pelas fotos.

Foi precisamente por ter quase um metro de altura que reparámos nestes exemplares à beira de uma estrada entre Mogadouro e Alfândega-da-Fé. Lembrou-nos a S. mellifera e a S. nutans, mas a ecologia que as Floras lhe atribuem (sítios secos e matos frescos com solo ácido) diferencia-a bem da primeira (que prefere substratos calcários), e a posição das flores, erguidas como trombetas, afastam-na da segunda, cujas corolas tubulares apontam para o chão (como indica o epíteto nutans).

Trata-se de um endemismo da Península Ibérica de que, por cá, só parece haver registos recentes no nordeste, embora a Nova Flora de Portugal, de Amaral Franco, assegure que também ocorre no centro e na serra de Monchique. O nome específico, atribuído em 1943 pelos botânicos Werner Hugo Paul Rothmaler e António Rodrigo Pinto da Silva, homenageia o botânico António Xavier Pereira Coutinho.

16/06/2014

Pérolas na areia


Sagina nodosa (L.) Fenzl


Eis uma planta que, distribuindo-se pelos três continentes do hemisfério norte (incluindo a Gronelândia), tem toda a vantagem em ser conhecida pela designação inglesa knotted pearlwort. Não respeitando ela fronteiras políticas ou divisões geográficas, é o inglês, como língua franca da globalização, que melhor se ajusta ao seu estilo de vida. Se insistíssemos em ser patriotas, haveria o inconveniente de nem a Sagina nodosa nem nenhuma das outras espécies do género (há sete em Portugal) terem algum nome comum na nossa língua, como aliás também não têm em castelhano ou em qualquer outra língua ibérica. De um modo geral, essas lacunas do nosso idioma dever-se-ão à reconhecida falta de apreço que sempre tivemos pelas coisas espontâneas da natureza. Os povos urbanizados do norte da Europa puderam, muito antes de nós, desenvolver uma apreciação estética do mundo natural só ao alcance de quem não cultiva batatas para sobreviver.

Neste caso, porém, a ausência de nome comum em português pode desculpar-se com a raridade da planta em território nacional. Confinada às depressões húmidas em areias litorais a norte do Mondego, ela nunca foi abundante, e hoje em dia, com a rarefacção de tais habitats, sê-lo-á ainda menos. Só a conhecemos de Mira, onde é habitual encontrá-la junto às muitas lagoas e charcos que pontuam os pinhais. Apesar de a Flora Ibérica e outras obras de referência indicarem um período de floração tardio, de Junho a Setembro, em Mira ela adopta a atitude pragmática de florir a partir do início de Maio, logo que os charcos começam a secar e antes que a estiagem se torne demasiado severa. A planta é pequena e débil, com não mais que 10 cm de altura e hastes muito finas e ramificadas, mas as flores, com cerca de 1 cm de diâmetro, são suficientemente vistosas para se destacarem contra o amarelo pálido da areia.

O nome pearlwort, ou erva-das-pérolas, aplica-se a todas as espécies do género Sagina, e talvez se explique pela forma quase esférica dos botões florais. Já o epíteto nodosa, que deu knotted em inglês, refere-se aos verticilos de folhas curtas (não observáveis nos exemplares acima fotografados) que formam nós muito conspícuos ao longo dos caules. A erva-nodosa-das-pérolas destaca-se ainda entre as suas congéneres porque as flores têm pétalas bem visíveis, em geral duas a três vezes maiores do que as sépalas. A regra no género Sagina, como se pode confirmar nesta página, é que as pétalas sejam insignificantes ou mesmo inexistentes.

07/06/2014

Espelho nosso


Legousia scabra (Lowe) Gamisans
Estima-se que em Portugal, continente e ilhas, ocorram cerca de 4 mil espécies de plantas, algumas exóticas. Embora este número seja actualizado de vez em quando, para incluir as novidades e, sobretudo, para se adaptar às frequentes revisões taxonómicas, certo é que estamos ainda longe de as ter visto todas. Mas há que reconhecer que a apresentação de plantas que aqui fazemos tem os dias contados e, como aconselharia o nosso estimado Carlos Silva, teremos de passar às borboletas.

Façamos, porém, uma pausa. Se bastasse aos botânicos catalogar as plantas que vêem, sem ter em conta a multiplicidade de lugares onde podem ser encontradas e, consequentemente, desvalorizando as associações entre elas e a necessidade de programar a sua conservação de um modo compatível com o nosso uso do território, a botânica seria uma ciência com fim à vista. Terminada a listagem, bastaria manter um serviço eficiente de secretariado para pôr em dia as perdas e ganhos da biodiversidade, mais aquelas que estes. Ora o que lemos nas Floras mostra que o trabalho dos botânicos (e, mais geralmente, dos biólogos) não é tarefa miúda ou sequer à beira da conclusão. Além de ser essencial conhecer as plantas em detalhe, um saber que nos dias de hoje exige informação genética e domínio de aspectos teóricos sofisticados, é preciso ter um plano geral das suas escolhas de habitat, que ignoram as linhas de fronteira que traçamos nos mapas, e responder pela coexistência de animais e plantas, num programa global de sobrevivência. Francamente, cuidar de um mundo tão estragado, constantemente sujeito a perturbações, é tarefa de valentes. Estranha-se que quem tem poder de decidir sobre o nosso ambiente não estime a valia destes cientistas e não se guie por eles.

Para os amadores, que se passeiam pelo campo quando lhes apetece, e que amuam se não encontram as raridades que querem observar, um trabalho bem sucedido de conservação das plantas é um passaporte para inúmeros passeios e lições, de botânica e, às vezes, grego ou latim. A planta das fotos, uma herbácea esguia mas de média estatura que vimos nos calcários de Santo Adrião, em Vimioso, dá disso testemunho (pode ver aqui um mapa das populações de que há registo em Portugal). O nome do género homenageia Bénigne Legouz de Gerland (1695-1774), político francês e entusiasta pelas ciências e pelas artes, que deu a Dijon um centro de História Natural, um jardim botânico e uma escola de Belas-Artes; o epíteto latino scabra refere-se à aspereza do caule da planta. Em inglês, a espécie Legousia hybrida é conhecida como espelho-de-Vénus.

Quando o sol aquece, as flores da Legousia abrem completamente, formando um prato, e exibem um azul quase púrpura; caso contrário, reduzem-se a uma campânula meio fechada de cor azul pálida. Dias seguidos de chuva e nevoeiro em Maio podem levar as flores a não desabotoar de todo, restando-lhes a auto-polinização. Por isso, são bem-vindos os dias soalheiros que, diz a ciência das nuvens, se avizinham.


Minas de Santo Adrião, Vimioso

03/06/2014

Palha azul


Galium glaucum L. subsp. australe Franco


No tempo em que os rios não tinham o seu percurso seccionado por muralhas de betão, usava-se a expressão «leito de cheia» para designar aquelas zonas que só ficavam submersas quando o caudal engrossava. Essas oscilações de nível acompanhavam o correr das estações, fazendo com que a mesma paisagem assumisse ao longo dos meses roupagens muito variadas. Agora, junto às grandes barragens, há uma única mudança, brutal e estática, no nível das águas: a montante, estende-se um imenso lago eutrofizado; a jusante, escoa-se um fio de água que mantém a custo um rio moribundo. E é assim de Janeiro a Dezembro.

A vegetação de leito de cheio, que tão ameaçada está em Portugal com a artificialização dos rios, é muito especializada, e em geral nem gosta de molhar os pés, preferindo em cada ano esperar que as águas desçam para cumprir o seu ciclo vital. É justo questionar tão dúbia preferência: para quê estar tão perto de um rio se, para a sobrevivência da planta, é necessário que ele recue? A resposta é de índole quase filosófica: por muito precário e improvável que seja um nicho ecológico, a natureza não o pode desperdiçar, e há sempre uma planta adaptada a viver nele.

A jusante da barragem de Bagaúste, na Régua, a redução do caudal do Douro é quase permanente, apenas contrariada nas épocas de muita chuva, quando o rio, alimentado por descargas sucessivas, revive glórias antigas e ameaça inundar a baixa da cidade. Mas esses episódios são esporádicos e de curta duração. A vegetação ribeirinha mudou definitivamente, dominada agora por um salgueiral exuberante que ocupa até as ilhotas surgidas com o emagrecimento do rio. Debruçamo-nos no paredão e, como botânicos amadores incorrigíveis, invade-nos a vontade de observar de perto essas manchas verdes. Como podemos descer até elas? Alugamos um barco na Régua? Saltamos um portão com avisos de perigo e de proibição de passagem a pessoas estranhas ao serviço? Dois pescadores à linha que não parecem estar ao serviço da EDP respondem-nos quando de longe os interrogamos aos gritos. Sim, há uma passagem debaixo da estrada por um ribeiro entubado que agora está seco. O acesso, escondido entre silvas, mal se vê, e o túnel, baixo e com 20 a 30 metros de comprimento, é de uma escuridão absoluta. No final, para rematar, há um lanço de escadas estreito e íngreme. Completamos a travessia não sem alguma palpitação e suores frios, à mistura com os suores quentes próprios do dia escaldante. Estamos nas rochas na margem esquerda do Douro, a uma centena de metros da barragem. Das surpresas botânicas que nos aguardam merecem realce a rara Petrohagia saxifraga e este azul Galium glaucum, não assim tão raro mas aqui talvez no limite oeste da sua distribuição em Portugal e, a uma altitude de 60 m, bem fora do intervalo de 345-730 m prescrito pela Flora Ibérica.

O género Galium, a que os ingleses chamam bedstraw por algumas espécies terem servido para enchimento de colchões, é dos mais diversificados da flora portuguesa. As 21 espécies listadas para o nosso país incluem plantas anuais, outras perenes, umas rastejantes e minúsculas, outras erectas que podem ultrapassar 1 metro de altura. Caracterizam-se pelas folhas verticiladas, em grupos de quatro ou mais, e pelas pequenas flores brancas (às vezes amarelas), de quatro pétalas, dispostas em cachos terminais ou axilares. Com os seus quase 80 cm de altura,o G. glaucum está no grupo dos mais taludos do género, e pela floração profusa, visível de Maio a Julho, é certamente dos mais atraentes. É uma planta perene que frequenta lugares pedregosos e ácidos, não necessariamente perto de algum rio. A subespécie australe, que já foi espécie autónoma sob o nome de Galium teres, é endémica do quadrante noroeste da Península Ibérica.