05/07/2014

Salsa das nuvens

São Jorge é a ilha açoriana com formato mais peculiar, lembrando um charuto apagado que alguém atirou quase intacto às águas do Atlântico. Desenvolvendo-se em linha recta, com 54 Km de comprimento e 7 de largura máxima, mais estreita nas pontas, é uma ilha onde o mar está sempre à vista (desde que o nevoeiro o permita) mas as distâncias por estrada são consideráveis. As duas extensas linhas de costa, em regra recortadas de forma abrupta, são separadas por uma cordilheira central banhada quase em permanência por chuva e nevoeiro e sacudida por ventos impenitentes. Em Velas, sede do principal concelho da ilha, o casario desce até junto do mar, e o mesmo acontece na Calheta, mas a maioria dos povoados situam-se no topo das falésias, a uns 300 ou 400 metros de altitude, amiúde com sucursais desabitadas lá em baixo, em fajãs às quais se chega por íngremes estradas em ziguezague.

A sucessão de picos que forma a espinha dorsal da ilha tem o seu ponto culminante no Pico da Esperança, com uma altitude máxima de 1053 metros. Quem quiser observar muitas das preciosidades da flora endémica açoriana deve reservar várias horas para percorrer os 9 Km do estradão que, começando no Pico do Pedro e terminando no Pico Pinheiro, liga uma dezena dessas elevações, entre elas o Pico da Esperança. O ideal seria fazer o passeio a pé, mas esse feito, embora não apresente dificuldades, é pouco agradável de cometer com o agressivo cocktail de nevoeiro, frio, chuva e vento que costuma prevalecer no local. Mas, como as raridades botânicas se acumulam em profusão mesmo nas bermas do estradão, não é o nevoeiro cerrado que nos impede de vê-las e fotografá-las. No que ele é intransigente é em vedar-nos as anunciadas vistas de perder o fôlego, incluindo (asseveram aqueles cuja função é vender paisagens aos turistas) todas as ilhas vizinhas e mais aquelas que o não são.


São Jorge: Fajã dos Cubres; o Pico visto da Ponta dos Rosais
Compreende-se pois que sejamos forçados a escolher imagens de outros locais da ilha para ilustrarmos o texto. O nevoeiro, como nos ensinaram os álbuns do Asterix, é igual e branco em todas as latitudes. Contudo, se não se distingue pela fotogenia, o nevoeiro do Pico da Esperança vale pela persistência, e é graças a ele que plantas como o Ranunculus cortusifolius e o Chaerophyllum azoricum proliferam de modo assombroso. À falta de um nome comum, chamamos salsa-das-nuvens a este último, mas a escolha é algo desajustada, pois as folhas de quase um metro de comprimento só serviriam para temperar a refeição de um ciclope vegetariano. Certo é que o C. azoricum, um endemismo açoriano que ocorre apenas em São Jorge, São Miguel, Pico e Flores, e que em geral é tido por raro e ameaçado, aqui forra quase continuamente largas extensões da encosta.



Chaerophyllum azoricum Trel.


Já antes assinalámos o fenómeno do gigantismo que atingiu várias das estirpes vegetais que se instalaram nas ilhas, descendentes de plantas que no continente nunca se destacaram pela envergadura. A comparação entre este colosso açoriano e o débil e continental Chaerophyllum temulum não podia ser mais eloquente.

Planta perene ou bienal, florescendo de Maio a Julho, o C. azoricum reconhece-se facilmente pelas folhas imparipinadas, com folíolos grandes, de margens irregularmente serradas. A disposição das flores em umbelas terminais é típica da família das umbelíferas, que inclui espécies comestíveis como a salsa e a cenoura, e outras muito venenosas como o Oenanthe crocata. Em São Jorge, embora se dê melhor nos picos enevoados, o C. azoricum também aparece esporadicamente a menores altitudes.

1 comentário :

ZG disse...

Que maravilha!
Sempre espectacular, a Ilha de S. Jorge e as suas belas plantas!!