04/10/2016

Lagoas & patalugos


Lagoa do Fogo, ilha de São Miguel
Completámos este Verão a ronda de visitas botânicas aos Açores que iniciámos em 2010. Ao longo destes anos, estivemos pelo menos uma semana em cada ilha, e a quatro delas (Terceira, Flores, Pico e São Jorge) voltámos repetidas vezes em diferentes períodos do ano. Não sendo nós botânicos profissionais, seria inapropriado dizer que foram visitas de trabalho, mas a exploração botânica serviu-nos de pretexto para as férias activas de que gostamos. Esse não-trabalho teve como resultado visível os cento e tantos textos sobre os Açores e a sua flora que aqui publicámos, e o lançamento (ainda a meio-gás) do portal Flora-On Açores, iniciativa da Sociedade Portuguesa de Botânica de que somos colaboradores empenhados. Porque seria presunção achar que já lhe conhecemos todos os cantos, continuaremos a visitar o arquipélago. Move-nos também o impulso de regressar aos lugares onde nos sentimos bem.

São Miguel foi a última ilha do nosso roteiro botânico. Dirão alguns que deixámos o melhor para o fim, mas não foi essa a impressão com que ficámos. Mais do que qualquer outra ilha açoriana, São Miguel vive um paradoxo: faz do turismo de natureza o seu cartaz, mas sobra nela muito pouco (ou mesmo nada) da natureza virginal que os visitantes imaginam lá existir. As cerradas plantações de criptómerias, as ondulantes pastagens, a proliferação descontrolada de invasoras como o incenso, a hortênsia e a conteira — tudo isso remeteu a vegetação natural à invisibilidade, fazendo-a regredir a um ponto de não retorno. Só no Pico do Vara e em alguns cumes em volta da lagoa do Fogo pudemos reencontrar, em versões empobrecidas, as florestas húmidas de juníperos e de louros que aprendemos a amar noutras ilhas.

Para minimizar o desgosto, talvez tivesse sido melhor conformarmo-nos ao papel de turistas que vêm para admirar as vistas. Ainda que saibamos como o verde que as rodeia é tantas vezes adulterado, as lagoas de São Miguel são mesmo de encher o olho. Mas, se mudarmos abruptamente de escala e começarmos a esquadrinhar as plantas herbáceas, reconhecemos, algo inesperadamente, que não foram poucas as plantas nativas (ou mesmo endémicas) que conseguiram adaptar-se a habitats dominados por espécies exóticas. Orquídeas como a Platanthera pollostantha são frequentes, nas partes altas da ilha, em matas de criptomérias e em taludes de estrada, e quase sempre lhes fazem companhia duas asteráceas endémicas de floração estival: uma leituga (Tolpis azorica) e um patalugo (Leontodon rigens).




Leontodon rigens (Aiton) Paiva & Ormonde


Os patalugos (nome que se dá às espécies açorianas do género Leontodon) apresentam-se em duas versões, ambas já aqui mostradas: o patalugo-maior e o patalugo-menor. É mentira que o primeiro seja maior do que o segundo. A diferença mais evidente é que o patalugo-menor (nas fotos) tem inflorescências abundantes, formadas por várias dezenas de capítulos, enquanto que o patalugo-maior as tem esparsas, com um máximo de meia dúzia de capítulos por haste. Há ainda um importante critério geográfico, só recentemente clarificado, que se resume a isto: em nenhuma ilha do arquipélago os dois patalugos coexistem. O patalugo-maior é exclusivo do grupo central, e o patalugo-menor fica-se por São Miguel, Flores e Corvo. (Notícias antigas sobre a ocorrência do patalugo-maior nas Flores e em São Miguel são equivocadas, pois referem-se a híbridos do patalugo-menor com o Leontodon taraxacoides, uma espécie ruderal muito disseminada no continente e nas ilhas.)

No mesmo artigo (disponível aqui) em que põem em ordem a distribuição dos patalugos pelas diferentes ilhas, os autores (Mónica Moura, Luís Silva, Elisabete F. Dias, Hanno Schaefer, Mark Carine) concluem que afinal há dois patalugos-menores, pois as plantas de São Miguel não são iguais às do grupo ocidental (Flores e Corvo). Estas últimas passam a chamar-se Leontodon hochstetteri, e o nome Leontodon rigens fica reservado à espécie de São Miguel. É verdade, trata-se de um endemismo de uma ilha só. Felizmente não é nada raro: quem em Agosto percorrer as cercanias da lagoa das Sete Cidades ou da lagoa do Fogo, ou subir ao Pico da Varra ou à serra da Tronqueira, não deixará de avistar grandes e floridas populações empoleiradas nas bermas das estradas ou em ladeiras íngremes.

Para além das divergências genéticas apontadas no artigo, que diferenças visíveis há entre o Leontodon rigens e o agora chamado Leontodon hochstetteri? Como muito bem assinalam os autores, os capítulos do Leontodon hochstetteri têm pedúnculos curtos, e por isso a inflorescência é compacta, arredondada, em forma de umbela (fotos aqui). No L. rigens, pelo contrário, os pedúnculos são compridos (última foto acima), resultando daí uma inflorescência mais ampla e achatada (o termo técnico é corimbosa).

Não conseguimos decidir qual das duas variantes é mais bonita. Mas, como testemunham as imagens, o patalugo de São Miguel gosta, tal como nós, de contemplar lagoas, e temos que lhe agradecer por nos tornar essa contemplação menos frustrante.

8 comentários :

Carlos M. Silva disse...

E com a vossa descrição, mesmo que algo desapontada com o cartaz turístico que tentará mostrar o que existe de autótone empurrado para recantos das ilhas, vem a poesia dos vossos escritos e do vosso encantamento.
Obrigado pela mostra.
Carlos M. Silva

Francisco Clamote disse...

Obrigado, Paulo, por mais esta lição.

José Batista disse...

Fiquei sem perceber o motivo por que a contemplação das lagoas de S. Miguel possa ser frustrante: a não ser ao perto, com a eutrofização, por exemplo nas Sete Cidades, ou a infestação por espécies exóticas. Mas esse pormenor é irrelevante em textos cheios de força expressiva, conteúdo rigoroso e elegância, como são sempre os artigos do "Dias-com-árvores". E depois há ainda o mimo das fotografias e, neste caso, com uma delas da autoria de um Professor que foi meu e que tanto estimo e prezo: Jorge Paiva.
Obrigado.
JB

José Batista disse...

Ora, há entusiasmos que levam a erro: tão gulosamente mirei as fotografias, de cima para baixo, que acabei por ler apenas a parte do texto que inferiormente se lhes segue. E o motivo da frustração está lá bem explicado, na parte superior.
Assim, o meu primeiro comentário, como este, não justificam a publicação...
Obrigado.

JB

Paulo Araújo disse...

Carlos:
Nós é que te agradecemos a visita e as boas palavras. E não desistas de visitar os Açores quando tiveres oportunidade.

Francisco:
Obrigado pela gentileza.


Caro José Batista:
Desobedecendo às suas instruções, acabei por publicar os seus dois comentários, pois eles são pertinentes e de uma grande amabilidade, que aproveito para agradecer.

Maria Carvalho disse...

(Um esclarecimento: a legenda onde se lê o nome do Professor Jorge Paiva refere-se à autoria do nome científico da espécie que as fotos ilustram.)

José Batista disse...

Oh! Claro, Maria Carvalho, hoje não me fiquei por uma só asneira, e em pouco tempo... É bem visível que se trata do nome científico da espécie, completado com os nomes dos proponentes (desse nome).
Outra vez: Obrigado.

bea disse...

Os Açores devem ser lindos e as fotos com arte aguçam a curiosidade.