Passaporte falsificado
Quem por estes dias chegar a Inglaterra vindo de Portugal, declarando falsamente ter estado apenas em Espanha, comete um crime punível com dez anos de prisão. Não sabemos se a pena é só para pessoas ou se também abrange plantas e animais de companhia. Vem a propósito recordar um episódio histórico de falsificação de passaporte, mas em sentido contrário, envolvendo um malmequer arbustivo de comprovado mérito ornamental que, na década de 1830, se instalou no Chelsea Physic Garden fazendo-se passar por madeirense quando na verdade era originário da ilha de Lanzarote, nas Canárias. O botânico e bibliotecário David Don, que em 1836 primeiro descreveu a espécie baseando-se nos exemplares cultivados nesse jardim botânico londrino, confiou nos documentos com que a planta certificava a sua espúria nacionalidade. Eis o que na sua boa-fé escreveu David Don no tomo VII (de 1836) de The British Flower Garden: “Só recentemente esta elegante espécie arbustiva foi adicionada à nossa colecção pelo Sr. Webb, da Madeira. Parece diferenciar-se distintamente das várias espécies arbustivas nativas das Canárias (...) que se enquadram, sem dúvida, no mesmo género.” Como todas as outras plantas apresentadas nessa obra, a descrição da então chamada Ismelia maderensis era acompanhada por uma ilustração primorosa, muito melhor do que as fotos hoje em dia usadas em livros de divulgação botânica.
O Sr. Webb a que se refere David Don era Philip Parker-Webb (1793–1854), co-autor, com o francês Sabin Berthelot, da monumental Histoire Naturelle des Îles Canaries, publicada em 9 volumes entre 1836 e 1850. Webb viveu vários anos nas Canárias — e, se não é impossível ter visitado a Madeira, é certo que não se lhe conhecem quaisquer estudos sobre a flora dessa ilha. A fama, nesses tempos, circulava devagar e demorava a estabelecer-se, e é perfeitamente desculpável que David Don ignorasse que Webb, cuja obra maior ainda estava por vir, residia nas Canárias e não na Madeira, onde afinal eram muitos os britânicos expatriados.
O nome genérico Ismelia, que lembra o Ismael bíblico e foi depois preterido por Argyranthemum, é motivo de alguma curiosidade. O autor do nome, o francês Henri Cassini (1781-1832), absteve-se de lhe explicar o significado aquando da sua publicação, datada de 1826. Talvez o tenha usado apenas porque lhe soou bem, o que é uma razão tão válida como outra qualquer. E é pena que as regras da taxonomia botânica tenham excluído esses malmequeres das ilhas do género Ismelia. Se assim não tivesse sucedido, talvez na Madeira e nas Canárias se falasse hoje de ismélias em vez de estreleiras ou margaritas. O género Ismelia não foi varrido dos anais da botânica, mas ficou reduzido à única espécie descrita por Cassini, a marroquina Ismelia versicolor.
Quanto ao equivocamente chamado Argyranthemum maderense, impõe-se reconhecer que este endemismo de Lanzarote — um arbusto de não mais que 70 cm de altura, florescendo entre Janeiro e Maio, com capítulos de um bonito amarelo sulfuroso — é talvez o mais atraente de um género formado quase todo ele por plantas de decidida vocação ornamental. Não é só a cor das flores (quase todos os outros Argyranthemum as têm brancas), mas também a sua abundância e o seu contraste com a folhagem glauca e luzidia. Porém, mais do que vê-lo em jardins, é emocionante encontrá-lo no seu habitat natural, que são os montes e crateras comparativamente frescos do norte de Lanzarote, em especial aqueles que formam o maciço de Famara.