29/04/2021
18/04/2021
Flor do Arlequim
Santa Maria é a ilha de duas cores: amarela a metade ocidental, sobrando para a outra metade o verde que é marca registada do arquipélago. É essa a imagem mais forte que, ainda o avião não aterrou, fica na retina dos turistas que acorrem à ilha nos meses do Verão. Quando em outros anos a visitámos em Maio ou Junho essa dupla personalidade era evidente, mas desta vez, visitando-a no final de Março após semanas de chuva copiosa, o verde era a única cor autorizada, com as vacas pastando felizes entre as ervas tenras. Contudo, se a cor não marca a diferença, já o relevo não depende da sazonalidade: em volta do aeroporto e da Vila do Porto, e até que a terra se empina anunciando o Pico Alto, desenrola-se uma área plana pontuada por habitações baixas e esparso arvoredo exótico. É aqui que se situa o bairro do aeroporto: casas amplas e brancas servidas por ruas rectilíneas, despojos dos tempos gloriosas de uma ilha que recebeu, ainda durante a 2.ª Guerra Mundial, a primeira base militar americana no Atlântico. Já sem militares, o tempo das vacas gordas prolongou-se até meados dos anos 70, quando os aviões deixaram de fazer aqui escala e o aeroporto da ilha perdeu quase toda a importância. Dessa época sobrou um cinema (obviamente chamado Cinema do Aeroporto) com capacidade para 800 lugares — o edifício, agora pintado de fresco, acaba de ser recuperado e terá nova vida como centro cultural.
Talvez os terrenos baldios rodeando as casas tenham sido jardins, mas o abandono até os fez mais interessantes. É esta a zona da ilha onde mais aparece a Serapias parviflora, orquídea que, nos Açores, apenas existe nesta ilha e talvez na Terceira. Herbáceas simpáticas como o Centaurium tenuiflorum, Centaurium maritimum, Mentha pulegium e Papaver somniferum são aqui muito frequentes. Nas valas e charcos, e tirando partido de uma capacidade de retenção de água como só existe nesta ilha (muito menos «porosa» do que as demais ilhas do arquipélago), abundam o Alisma lanceolatum e diversas ervas higrófilas. E até plantas exóticas como a Verbena rigida (que pouco se vê nas outras ilhas) parecem aqui ser mais mimosas e menos agressivas.
Sul-africana de origem, a Sparaxis bulbifera, ou flor-do-Arlequim, talvez caiba na categoria das exóticas invasoras que são apenas moderadamente nocivas. Não a havíamos notado em visitas anteriores a Santa Maria porque floresce cedo, entre Março e Abril, mas ela é abundante na metade plana da ilha, ocupando contudo habitats que já pouco têm de natural, como pastagens e terrenos baldios. Convive muito bem com o pastoreio e até é favorecida por essa actividade, já que as vacas, que não lhe apreciam o sabor, eliminam a concorrência e deixam-na tranquila. É uma planta vivaz, com hastes floríferas de 15 a 60 cm de altura renovadas anualmente a partir de bolbos subterrâneos. Além da reprodução normal por semente, e como aliás sugere o epíteto específico, é capaz de multiplicar-se vegetativamente através de bolbilhos formados nas axilas das folhas. As folhas, de 10 a 30 cm de comprimento, têm forma de espada e dispôe-se em leque, à semelhança das folhas de outras iridáceas. O nome comum Harlequin flower, usado por anglo-saxónicos, é aplicado indistintamente às diferentes espécies do género Sparaxis, todas elas endémicas da província do Cabo, na África do Sul, e talvez se ajuste melhor a plantas mais coloridas como a Sparaxis tricolor. Tanto quanto se sabe, nos Açores a S. bulbifera só está naturalizada em Santa Maria e em São Miguel; de resto, emigrou também para as antípodas e naturalizou-se com sucesso na Nova Zelândia e na Austrália.
Publicada por Paulo Araújo em 18.4.21 3 comentários
Etiquetas: Açores - Santa Maria , Iridaceae
13/04/2021
Tamujo das ilhas
O arquipélago dos Açores é feito de terra jovem de origem vulcânica. A ilha mais nova é o Pico, com cerca de 40 mil anos, sendo Santa Maria a mais antiga, não tendo, porém, mais do que 14 milhões de anos. Como medida de comparação podemos usar o arquipélago da Madeira, que terá nascido há uns 70 milhões de anos. As ilhas açorianas distam relativamente pouco dos continentes europeu e africano, e as plantas que hoje vegetam nestas ilhas resultaram da colonização de espécies continentais (possivelmente com uma passagem por outras ilhas da Macaronésia), que sobreviveram à viagem, se adaptaram ao solo poroso mas muito fértil, e cujo ciclo de vida se coordenou com o clima atlântico de temperaturas amenas e muita chuva. Passados milhões de anos, algumas das plantas açorianas têm já fraca lembrança dos progenitores, e são hoje espécies autónomas, que não existem em mais nenhum local do mundo. Por exemplo, o Cerastium azoricum, a Myosotis azorica e a Euphrasia azorica só ocorrem nas ilhas mais ocidentais, Flores e Corvo, embora os géneros correspondentes estejam representados na flora continental. Noutras espécies, porém, a herança genética foi mais resistente à erosão do tempo, ou a chegada às ilhas foi mais tardia, ou a colonização foi mais difícil — e as semelhanças morfológicas com as espécies continentais mantêm-se. Por isso, é ainda controverso que essas plantas açorianas constituam espécies distintas.
O tamujo tem, todavia, um perfil peculiar entre os cerca de 70 endemismos açorianos conhecidos: para além da Myrsine retusa, só duas espécies adicionais (Smilax azorica e Corema album subsp. azoricum) são dióicas. Supomos que, nesse pormenor, estas espécies tenham estado em desvantagem, pois são precisas plantas dos dois sexos para que a espécie se instale com sucesso num novo habitat.
Da família Primulaceae, o tamujo está presente em todas as ilhas açorianas, aprecia os bosques sombrios e frescos de cedro-do-mato (Juniperus brevifolia), e forma arbustos baixos de folhagem perene muito ramificada, com folhas ovais arredondadas, alternadas, coriáceas e dentadas no ápice. A floração inicia-se no fim de Março, pelo menos na ilha de Santa Maria, onde pudemos finalmente ver este ano as flores: as masculinas com anteras vermelhas muito vistosas; as femininas diminutas (cerca de 2 mm), esbranquiçadas, com sépalas pintalgadas. O fruto é uma baga com uma semente.
Publicada por Maria Carvalho em 13.4.21 1 comentários
Etiquetas: Açores - Santa Maria , Primulaceae
04/04/2021
Dona Genciana revisitada
Portugal, talvez por falta de cadeias montanhosas elevadas, foi muito desfavorecido face a Espanha na partilha de espécies de Gentiana: só temos duas (G. pneumonanthe e G. lutea, esta só na serra da Estrela) e os nossos vizinhos têm 13; se lhes acrescentarmos os géneros aparentados Gentianopsis e Gentianella, o saldo final é de 16-2 a favor de Espanha. Que, com toda esta prodigalidade, ainda pôde assegurar que duas dessas espécies (G. boryi e G. sierrae) fossem exclusivas do seu território.
Os Pirenéus, que visitámos uma única vez, é um local de eleição, mesmo nos meses mais quentes, para quem queira familiarizar-se com a diversidade de gencianas e aparentadas, acolhendo algumas espécies amplamente distribuídas na Europa. Duas delas são hoje aqui apresentadas, e servem de pretexto para averiguar das diferenças entre uma Gentianella e uma genuína Gentiana.
Uma diferença promissora é que, na Gentianella, os lóbulos da corola (é algo incorrecto falar em «pétalas» quando elas não estão claramente autonomizadas) têm a base fimbriada, formando uma franja na abertura do tubo floral. Essa franja está ausente de todas as espécies de Gentiana, mas surge também, e de modo ainda mais visível, na Gentianopsis ciliata, uma falsa genciana em que todo o bordo da corola está guarnecido de cílios. Assim, quando o leitor, nas suas andanças pós-pandémicas pelas montanhas europeias, deparar com uma planta que lhe pareça ser uma Gentiana mas apresente flores mais ou menos franjadas (não se esqueça da lupa, tão indispensável ao seu kit de sobrevivência como o aparelho de gps, a garrafa de água e o bastão de caminhada), já poderá declarar confiante que se trata afinal de uma Gentianella ou Gentianopsis (ou simplesmente Gentianella, pois a opinião mais recente é que os dois géneros são um só).
Para terminar, uma palavra de apreço pela Gentiana cruciata, uma planta de prados de montanha e clareiras de bosques em altitudes não demasiado elevadas (até 2000 m), com preferência por substratos calcários. As flores tubulares azuis, mais ou menos pigmentadas na garganta, são traços de família que saltam à vista. No entanto, as folhas grandes e os caules robustos, e a disposição das flores em verticilos axilares (ver 1.ª foto), diferenciam-na claramente de outras gencianas azuis de flores semelhantes (como a G. pneumonanthe e a G. angustifolia). Dir-se-ia que a G. cruciata se situa na transição entre esse grupo de espécies, formado por herbáceas tendencialmente rasteiras, e as avantajadas G. lutea e G. burseri.
Publicada por Paulo Araújo em 4.4.21 1 comentários
Etiquetas: Gentianaceae , Pirenéus