16/09/2022

Vida apomítica



Calcula-se que pelo menos 10% das espécies de fetos actualmente existentes no planeta sejam apomíticas, e portanto dispensem a reprodução sexual. Não significa isso, porém, que a reprodução seja vegetativa (como acontece com as plantas que produzem bolbilhos) ou que os descendentes assim gerados sejam geneticamente idênticos aos progenitores. O ciclo de vida dos fetos alterna entre dois estádios principais: os esporófitos (que apresentam o aspecto que consideramos normal num feto, com raízes e folhas) produzem esporos, e os esporos germinam para dar origem aos gametófitos (que parecem musgos gelatinosos e quase nunca conseguimos observar). São estes que, produzindo espermatozóides e dispondo ainda de orgãos femininos receptivos, se encarregam da tarefa reprodutiva de que resultam novos esporófitos. Os fetos apomíticos alternam igualmente entre estes dois estádios: os esporos que produzem são viáveis, e também se transformam naquela gelatina que são os gametófitos, mas estes estão aptos a gerar novas plantas (ou, para sermos rigorosos, novos esporófitos) sem que haja qualquer fecundação. Assim, a nova planta só tem informação genética de um progenitor: aquele que produziu o (único) esporo que intervém na sua criação. Sucede que, na maioria dos fetos apomíticos, a criação de esporos envolve prévia duplicação de cromossomas seguida por uma redução (meiose). O resultado é que, embora cada esporo tenha os mesmos cromossomas que o indivíduo que o produz, estes podem estar emparelhados de modo distinto (o processo é sumariamente explicado neste artigo); e, se for esse o caso, o descendente não será, geneticamente, uma cópia do seu progenitor.

Assim, ao contrário do que tradicionalmente se supunha, a apomixia pode não ser um beco sem saída no processo evolutivo dos seres vivos. E também não é verdade que o afunilamento genético daí resultante produza sempre linhagens frágeis e pouco competitivas. Um desmentido eloquente é dado pelo vigoroso (e apomítico) falso-feto-macho (Dryopteris affinis subsp. affinis), que está largamente difundido na Europa, e é dos fetos mais comuns em bosques e lugares frescos tanto em Portugal continental como nos Açores e Madeira.

Asplenium filare subsp. canariense (Willd.) Ormonde [= Asplenium canariense Willd.]


Nos arquipélagos da Madeira, Canárias e Cabo Verde existem duas linhagens do Asplenium aethiopicum. Como várias vezes acontece em grupos taxonomicamente intrincados e ainda não inteiramente compreendidos, este nome não designa propriamente uma espécie mas sim um agregado de espécies próximas, com distintos números cromossómicos e diferentes modos de reprodução — o que nem sempre se reflecte em diferenças morfológicas claras ou em preferências ecológicas distintivas. Uma dessas linhagens está ilustrada nas fotos acima, obtidas nos pinhais de Arafo, em Tenerife; recebe o nome de Asplenium filare subsp. canariense, e é exclusiva de três das ilhas Canárias: Tenerife, La Palma e El Hierro. A outra, de que já aqui falámos, corresponde ao Asplenium aethiopicum subsp. braithwaitii, e está presente na Madeira, em La Palma, e em cinco ilhas de Cabo Verde: Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Santiago e Fogo. Segundo José Ormonde, autor de ambas as combinações, estes dois fetos não se distinguem pela ecologia (ambos buscam lugares mais ou menos sombrios em substrato rochoso), mas morfologicamente são suficientemente díspares para serem reconhecidos à vista desarmada: o primeiro tem frondes mais estreitas, nitidamente caudadas. Geneticamente, as diferenças entre eles são importantes: A. filare subsp. canariense é hexaplóide e apomítico, enquanto que A. aethiopicum subsp. braithwaitii é dodecaplóide e de reprodução sexuada.

Que o segundo surja num maior número de ilhas do que o primeiro pode ser apenas um acaso, pois ambos são relativamente raros na generalidade das ilhas onde ocorrem. E não há dúvida de que estes dois nomes correspondem a entidades taxonómicas distintas. Mas serão esses nomes apropriados? Afinal, a generalidade das floras considera que Asplenium filare é ele próprio uma subespécie do A aethiopicum. E estarão essas duas linhagens realmente restritas aos arquipélagos da Macaronésia? Ou existirão também no continente africano ou até em paragens mais longínquas? Ormonde não parece ter chegado a compará-las com plantas de outras proveniências, e o grupo do Asplenium aethiopicum tem uma distribuição vastíssima, que inclui a América tropical, a África, a Austrália e o sudeste da Ásia. Morfológica e geneticamente é um grupo muito variado, e dentro dessa variabilidade não é difícil encontrar, no continente africano (e, em particular, na África do Sul), plantas muito semelhantes às das ilhas. Só um estudo exaustivo, ainda por realizar, poderá esclarecer estas questões.

1 comentário :

bettips disse...

São os homens que imitam a Natureza e não o contrário. Tanta a diversidade!
Abçs