27/10/2022

Dupla atracção



Na nossa terceira visita a Tenerife, em Maio deste ano, aterrámos no aeroporto sul da ilha. Foi uma estreia, mas é para lá que voa a TAP e tínhamos uns vouchers pandémicos da companhia aérea nacional para gastar. Como de costume, reservámos hotel na capital, Santa Cruz, que fica no extremo oposto da ilha. Esperava-nos assim uma viagem de 60 km, com algumas pausas no meio, antes de podermos arrumar as malas. Era ao princípio da tarde, e parámos em Las Eras, pequeno povoado costeiro onde os lotes abandonados e as ruas por asfaltar testemunhavam ambições imobiliárias que deram para o torto. Não foi certamente a beleza do local que nos atraiu: o restaurante popular onde almoçámos peixe grelhado abria portas para uma rua poeirenta que nem a proximidade do mar redimia. Estranhamente, não retomámos a viagem logo após a refeição. Em vez disso, fizemos um percurso de quase duas horas nas falésias próximas, sacudidos por um vento bravio que ora se opunha determinadamente ao nosso avanço, ora se esforçava por nos atirar ao mar mudando traiçoeiramente de direcção. Afinal não fora por inépcia do piloto que o avião tanto dançara na aproximação à pista.

Que fazíamos ali nessa tarde ventosa e desagradável, se podíamos estar já (imitando os hábitos de repouso do povo que vínhamos visitar) tirando uma siesta no aconchego do hotel? Observávamos plantas, como é nossa sina, mesmo que o vento furioso tornasse problemático captá-las em fotos. Aquele ponto da costa leste de Tenerife ficava-nos mesmo no caminho, e para os dias seguintes tínhamos outros passeios programados. Além de que já tínhamos aprendido nas visitas anteriores que não há lugar nesta ilha (mesmo numa costa tão castigada pelo turismo e pelo mau urbanismo) que seja destituído de interesse botânico.

Atractylis preauxiana Sch. Bip.


A persistência foi recompensada quando, debruçando-nos na falésia, vimos este arbusto de porte compacto, agachado para melhor se proteger do vento. Por que escolhem certas plantas viver à beira mar se depois são obrigadas a tantas cautelas? Não podem erguer um ramo que vem logo o vento vergá-lo. E assim ficam, rentes ao chão, talvez porque a proximidade do mar e os salpicos de água salgada sejam brindes irrecusáveis. As folhas suculentas e acetinadas, assim como a forma atarracada, reflectem a adaptação desta planta ao ambiente agreste. Os capítulos florais brancos cravados na almofada folharuda são de uma beleza discreta, e as brácteas involucrais formam um mosaico bicolor, verde-glauco e castanho-púrpura. O efeito é digno do mais requintado jardim, mas esta Atractylis preauxiana só sabe viver junto ao mar e com o embalo do vento. E tem que ser em Tenerife, no solo duro incrustado nas falésias de certos pontos da costa oriental da ilha, ou em lugares semelhantes na vizinha Grã-Canária: endémica do arquipélago canarino, a planta só existe nestas duas ilhas, e é muito rara em qualquer delas.

São duas as espécies de Atractylis endémicas do arquipélago, ambas confinadas a habitats costeiros. A segunda, restrita às ilhas de Lanzarote e Grã-Canária, é a Atractylis arbuscula, que é mais avantajada do que a A. preauxiana (50 cm de altura contra 10 ou 20 cm) e não apresenta a mesma forma almofadada, distinguindo-se também pelos capítulos mais estreitos.

Atractylis cancellata L.


Por completude, convidámos também a Atractylis cancellata a vir aqui mostrar-se. É a terceira espécie do género no arquipélago, e fotografámo-la também em Tenerife, mas anda longe de ser endémica dessas ilhas: existe em Portugal continental e em quase toda a bacia mediterrânica. É um pequeno cardo anual de hábito rastejante, sem qualquer semelhança com as suas primas das Canárias. Sem desdenhar da beleza que lhe advém sobretudo do porte miniatural, perde claramente em confronto com as outras duas. Mas não é nada rara na sua ampla área de distribuição — e, no que toca a assegurar a sua própria sobrevivência (bitola pela qual é razoável medir o sucesso de um organismo vivo), é óbvio que leva grande vantagem.

20/10/2022

Tomateiro arbóreo

Solanum betaceum Cav. [= Cyphomandra betacea (Cav.) Sendtn.]


Era uma vez uma ilha onde se perdia o tempo. Os habitantes começavam todos por chegar de alguma parte. Instalavam-se, casa, horta, pomar. Mas aos poucos iam perdendo os dias da semana, uma quarta-feira, uma sexta-feira, algumas tardes, muitas noites frias. A horta crescia e decrescia mas de parte nenhuma para parte nenhuma e a certa extraordinária altura quando alguém comia por exemplo uma salada de tomate perguntava já o que é isto.

Ana Hatherly, 463 tisanas, Quimera Editores, 2006

13/10/2022

Urtiga arbórea

Gesnouinia arborea (L. f.) Gaudich.


Romper de perna ao léu por um prado de urtigas é um modo rápido e moderamente doloroso de aprender que a natureza nem sempre é amiga, e que não nos fica mal tomar certas precauções elementares antes de nos defrontarmos com ela. Imaginem agora que as urtigas cresciam e se transmudavam em árvores, que essas árvores se multiplicavam para formar uma floresta, e que nos encontrávmos no interior dessa floresta sem saber como lá tínhamos ido parar nem como de lá sair. A primeira condição para esse pesadelo se materializar deu-se nas Canárias: há mesmo uma urtiga que se fez árvore. Sucede que no processo de agigantamento ela perdeu os pêlos que provocam irritação da pele (justamente chamados urticantes), de modo que lhe podemos tocar o tronco sem risco de comichão dolorosa. Além do mais, ela não é assim tão abundante nessas ilhas que consiga formar florestas. Na laurissilva de Anaga, em Tenerife, a Gesnouinia arborea (é esse o nome científico da urtiga gigante) é apenas uma componente esporádica do coberto vegetal dominado por loureiros e urzes. Assim, quem quiser experimentar uma reacção alérgica digna de nota por contacto cutâneo com plantas lenhosas agressivas deve preferir as florestas da América do Norte (onde proliferam o poison ivy e várias outras trepadeiras alergénicas) à comparativamente mansa laussilva das Canárias.

Baptizada originalmente como Urtica arborea por Lineu Filho em 1787, esta inofensiva pequena árvore foi mudada em 1830, pelo francês Charles Gaudichaud-Beaupré (1789-1854), para o género mono-específico Gesnouinia. Pese embora o seu tom rosado ou mesmo avermelhado, a arquitectura da inflorescência denuncia claramente o parentesco com as urtigas, e por isso o nome que se lhe dá nas Canárias é ortigón de los montes; mas, talvez para disfarçar a conexão pouco prestigiante, há quem prefira chamar-lhe estrelladera. Não ultrapassando os 5 metros de altura, e ficando-se muitas vezes pelo porte arbustivo, a Gesnouinia arborea é endémica das Canárias e só não está presente em Lanzarote e Fuerteventura, as duas ilhas mais áridas do arquipélago.

07/10/2022

Saudades das Canárias

Do género Pterocephalus conhecem-se cerca de 30 espécies que se distribuem pela região mediterrânica, Ásia, norte de África e Macaronésia. Mas não há registo da sua presença em Portugal. Por isso, deixamos-lhe aqui um roteiro, e um bom motivo, de passeio pelos arredores, caso queira conhecer este género sem ter de viajar para demasiado longe.

No sul e sudeste de Espanha, entre os 1000 e os 2300 metros de altura, ocorre uma espécie endémica do género Pterocephalus, o P. spathulatus. A rascapiedras é uma herbácea cespitosa, que aprecia o solo magro de rochas calcárias e dolomíticas. As folhas são inteiras, espatuladas e protegidas por uma camada grossa de penugem. As flores rosa-violeta, de Verão, nascem em capítulos solitários terminais que parecem grandes quando comparados com as folhas, mas na verdade as flores maiores (as externas) não ultrapassam os 3 cm de diâmetro.

Morando igualmente perto, e preferindo também taludes rochosos entre os 1500 e os 3100 metros de altitude, o Pterocephalus depressus é uma preciosidade da montanha do Atlas. É um endemismo de Marrocos que floresce mal chega o Verão. As folhas são lobadas e rechonchudas, formando tapetes de onde sobressaem as flores vistosas de pé alto.

Se puder viajar para um pouco mais longe, digamos até ao arquipélago das Canárias, terá o benefício de poder aí apreciar não um mas quatro endemismos do género Pterocephalus.

O Pterocephalus dumetorus restringe-se às ilhas centrais, Grã-Canária, Tenerife e La Palma. Distingue-se dos anteriores por ter porte arbustivo (daí o nome dumetorus), podendo chegar ao metro e meio de altura. As inflorescências arroxeadas não são solitárias, e estão vistosas entre Maio e Agosto. As folhas são grandes, de textura frágil e cor verde-pálido, lanceoladas e com um ápice pronunciado. Vimos o rosalito selvaje na Ladera de Güímar, em Tenerife, mas parece ser mais frequente na Grã-Canária.

Pterocephalus dumetorus (Brouss. ex Willd.) Coult.


Caso decida ir mesmo até La Palma, não deixe de procurar o rosalito palmero (Pterocephalus porhyranthus), de folhas ovais, ramagem densa e flores cor-de-rosa forte (o centro é quase púrpura). É também uma herbácea de altitude (1300-2450 m) que forma coxins baixos (uns 50 cm no máximo), em floração entre Junho e Agosto. Não temos fotos para lhe mostrar, porque ainda não visitámos La Palma, mas pode ver imagens aqui.

O Pterocephalus lasiospermus é um endemismo da ilha de Tenerife, havendo dele registo apenas na zona subalpina das Cañadas del Teide. O rosalito de cumbre é também arbustivo, de folhas em tom verde-cinza e capítulos de flores de corola rosada com pedúnculo longo, que surgem em pleno Verão (com o tempo já bastante quente na ilha, mas fresco e até ventoso nas zonas altas do Teide). O epíteto específico lasiospermus alude à protecção aveludada que cobre as sementes. Já foi raro, porque o gado o comia regaladamente, mas recuperou com a criação do Parque Nacional do Teide, e é hoje talvez a espécie de Pterocephalus mais abundante nas Canárias.

Pterocephalus lasiospermus Link ex Buch


Finalmente, temos o rosalito de Anaga (Pterocephalus virens). Forma almofadas de uns 30 cm de espessura feitas de folhas coriáceas de cor verde-escuro (virens), inteiras e arredondadas, e que se cobrem de capítulos solitários de flores com haste de tamanho médio. É um endemismo rupícula de Anaga, em Tenerife, e ocorre desde o nível do mar até aos 600 m de altitude.

Pterocephalus virens Webb & Berthel.


É uma espécie rara e protegida, mas continua ameaçada pelo pastoreio de cabras e pelo turismo excessivo nos locais onde se resguarda da aragem fria do norte. Mas o leitor não desista já da viagem: a planta não se incomoda se a visitar com as devidas cautelas.