Dupla atracção
Na nossa terceira visita a Tenerife, em Maio deste ano, aterrámos no aeroporto sul da ilha. Foi uma estreia, mas é para lá que voa a TAP e tínhamos uns vouchers pandémicos da companhia aérea nacional para gastar. Como de costume, reservámos hotel na capital, Santa Cruz, que fica no extremo oposto da ilha. Esperava-nos assim uma viagem de 60 km, com algumas pausas no meio, antes de podermos arrumar as malas. Era ao princípio da tarde, e parámos em Las Eras, pequeno povoado costeiro onde os lotes abandonados e as ruas por asfaltar testemunhavam ambições imobiliárias que deram para o torto. Não foi certamente a beleza do local que nos atraiu: o restaurante popular onde almoçámos peixe grelhado abria portas para uma rua poeirenta que nem a proximidade do mar redimia. Estranhamente, não retomámos a viagem logo após a refeição. Em vez disso, fizemos um percurso de quase duas horas nas falésias próximas, sacudidos por um vento bravio que ora se opunha determinadamente ao nosso avanço, ora se esforçava por nos atirar ao mar mudando traiçoeiramente de direcção. Afinal não fora por inépcia do piloto que o avião tanto dançara na aproximação à pista.
Que fazíamos ali nessa tarde ventosa e desagradável, se podíamos estar já (imitando os hábitos de repouso do povo que vínhamos visitar) tirando uma siesta no aconchego do hotel? Observávamos plantas, como é nossa sina, mesmo que o vento furioso tornasse problemático captá-las em fotos. Aquele ponto da costa leste de Tenerife ficava-nos mesmo no caminho, e para os dias seguintes tínhamos outros passeios programados. Além de que já tínhamos aprendido nas visitas anteriores que não há lugar nesta ilha (mesmo numa costa tão castigada pelo turismo e pelo mau urbanismo) que seja destituído de interesse botânico.
A persistência foi recompensada quando, debruçando-nos na falésia, vimos este arbusto de porte compacto, agachado para melhor se proteger do vento. Por que escolhem certas plantas viver à beira mar se depois são obrigadas a tantas cautelas? Não podem erguer um ramo que vem logo o vento vergá-lo. E assim ficam, rentes ao chão, talvez porque a proximidade do mar e os salpicos de água salgada sejam brindes irrecusáveis. As folhas suculentas e acetinadas, assim como a forma atarracada, reflectem a adaptação desta planta ao ambiente agreste. Os capítulos florais brancos cravados na almofada folharuda são de uma beleza discreta, e as brácteas involucrais formam um mosaico bicolor, verde-glauco e castanho-púrpura. O efeito é digno do mais requintado jardim, mas esta Atractylis preauxiana só sabe viver junto ao mar e com o embalo do vento. E tem que ser em Tenerife, no solo duro incrustado nas falésias de certos pontos da costa oriental da ilha, ou em lugares semelhantes na vizinha Grã-Canária: endémica do arquipélago canarino, a planta só existe nestas duas ilhas, e é muito rara em qualquer delas.
São duas as espécies de Atractylis endémicas do arquipélago, ambas confinadas a habitats costeiros. A segunda, restrita às ilhas de Lanzarote e Grã-Canária, é a Atractylis arbuscula, que é mais avantajada do que a A. preauxiana (50 cm de altura contra 10 ou 20 cm) e não apresenta a mesma forma almofadada, distinguindo-se também pelos capítulos mais estreitos.
Por completude, convidámos também a Atractylis cancellata a vir aqui mostrar-se. É a terceira espécie do género no arquipélago, e fotografámo-la também em Tenerife, mas anda longe de ser endémica dessas ilhas: existe em Portugal continental e em quase toda a bacia mediterrânica. É um pequeno cardo anual de hábito rastejante, sem qualquer semelhança com as suas primas das Canárias. Sem desdenhar da beleza que lhe advém sobretudo do porte miniatural, perde claramente em confronto com as outras duas. Mas não é nada rara na sua ampla área de distribuição — e, no que toca a assegurar a sua própria sobrevivência (bitola pela qual é razoável medir o sucesso de um organismo vivo), é óbvio que leva grande vantagem.