30/12/2022

Ervas do sul

Reichardia picroides (L.) Roth


Mesmo as plantas anónimas que parecem acompanhar-nos por todo o lado, e que se instalam com grande à-vontade em taludes e bermas de caminhos, podem ser motivo de surpresa. Consideremos, por exemplo, os dentes-de-leão: é habitual vê-los em relvados ou despontando nas rachas dos passeios, denunciando pela sua presença mais ou menos conspícua o grau de zelo (ou falta dele) de quem deveria cuidar desses espaços. A parte interessante é que, sendo cada dente-de-leão por si só uma planta bonita e digna da nossa atenção (a jardinagem que defendemos e, em pequena escala, praticamos é outro nome para a anarquia), há muitas plantas diferentes que se escondem sob essa designação imprecisa. Até dentro do género Taraxacum — que é quase intratável do ponto de vista taxonómico e reúne a maioria dos dentes-de-leão que vemos nos relvados — é grande a diversidade, e há várias outras compostas que, pelos seus capítulos amarelos formados exclusivamente por florículos ligulados (não se distinguindo, como acontece nos malmequeres, um disco central de florículos tubulares), merecem também ser chamadas dentes-de-leão. Dessas, a mais bem sucedida entre nós parece ser a Hypochaeris radicata, que aparece de norte a sul do país (sem falhar as ilhas) tanto em jardins citadinos como em ambientes rurais. Mas há dentes-de-leão não tão adaptáveis, alguns deles restritos a um tipo preciso de habitat: por exemplo, a Reichardia gaditana, prima da planta que hoje destacamos, é exclusiva de dunas marítimas e pouco tolerante a perturbações do habitat. Já a Reichardia picroides (fotos acima) não parece ser tão picuinhas, beneficiando por isso de uma distribuição mais ampla, que no caso de Portugal continental abrange grande parte do centro e sul do país. Não se lhe conhecendo preferência marcada por lugares alterados, não podia, até há poucos anos, ser qualificada como planta ruderal. Nota-se, contudo, que em anos recentes ela se vem expandindo para o norte do país, e aí qualquer recanto lhe serve de poiso: na ânsia de firmar raízes em território novo, abdica de qualquer exigência e assume descomplexadamente um comportamento low life.

As fotos que ilustram o texto foram captadas há oito anos junto à praia de Adraga, em Sintra. Porque a nossa geografia é mais nortenha, não era planta que víssemos com frequência, e por isso a submetemos a uma sessão fotográfica. A falta de familiaridade não nos permitia, no imediato, saber se estávemos em presença da Reichardia picroides (como depois se confirmou) ou da sua congénere Reichardia intermedia. Uma diferença decisiva é que as brácteas involucrais da segunda têm uma margem escariosa mais ampla — compare esta imagem com a 4.ª foto aí em cima. Nos anos que entretanto decorreram, não voltámos a Sintra, mas continuámos a encontrar a planta, e em lugares cada vez mais a norte. Vimo-la em São Jacinto (Aveiro) e em Gaia junto ao Cabedelo. Um ou dois anos depois atravessou o Douro, e agora, se quisermos novamente fotografá-la, não precisamos de sair da nossa cidade. Instalou-se não propriamente numa viela de má fama, mas numa daquelas pequenas ruas de traseiras onde sobrou um muro velho entre dois prédios de betão e vidro. Vá-se lá entender o que faz as plantas mexerem-se.

22/12/2022

Salmo


Deste-nos, é certo, o corrimão.
Mas os degraus,
os degraus onde começam?


Estendeste-nos a mão,
mas por dentro da fogueira. Por dentro
da fogueira que difícil é tocar-te.


Hospedaste nossa alma
numa torre acastelada, mas a torre
levantaste-a em terrenos inimigos.


Rasgaste em toda a parte veios de água.
Mas a sede
temos nós de procurá-la.


José Miguel Silva, O sino de areia (Gilgamesh, 1999)

12/12/2022

Sargacinho da levada



As montanhas sobranceiras a Güímar, em Tenerife, guardam um dos segredos mais inesperados da maior ilha das Canárias. A cerca de 1060 metros de altitude, corre uma levada esculpida nas encostas rochosas, furando túneis e debruçando-se em abismos de causar vertigens. Tal como na Madeira, é possível caminhar vários quilómetros ao longo da levada, tendo sempre a máxima cautela para não dar um passo em falso. Não há quaisquer resguardos para evitar quedas, e de facto vêem-se, no início do percurso, muitas tabuletas desencorajando os visitantes a aventurarem-se na caminhada. Não tendo acatado tais conselhos, avançámos sempre com prudência. Afinal, se na Madeira tivéssemos respeitado todas as proibições não teríamos visitado nem a levada do Caldeirão Verde nem a da Ribeira da Janela, e o nosso conhecimento da flora madeirense seria mais pobre.

Apesar de levar pouca água e de atravessar lugares não muito verdejantes, a levada de Güímar prometia-nos acesso a tesouros botânicos de outro modo inalcançáveis. À altitude a que aqui estamos, a vegetação é dominada pelos pinheiros-das-Canárias (Pinus canariensis), mas nestas encostas quase verticais a arborização é esparsa e presente apenas nos lugares mais resguardados. É sobretudo a vegetação herbácea e arbustiva que nos atrai a atenção: várias suculentas do género Aeonium, as estreleiras (género Argyranthemum), as emblemáticas canarinas (Canarina canariensis) e os simpáticos dragõezinhos (Dracunculus canariensis) são presença regular ao longo do passeio. Mas é só depois de atravessarmos o primeiro túnel (200 metros, uma brincadeira comparado com os da Madeira) que nos surge a mais rara das plantas que vimos nesse dia: uma pequena cistácea arbustiva de um género eminentemente mediterrânico, Helianthemum, que está bem representado na flora portuguesa, sobretudo na metade sul do país.

Helianthemum broussonetii Dunal


O sargacinho que viemos incomodar no seu esconderijo chama-se Helianthemum broussonetii. Endémico de Tenerife e La Palma, distingue-se dos seus congéneres (há dezasseis espécies de Helianthemum nas Canárias, a maioria endémicas) pelas folhas lanceoladas e relativamente grandes (até 2,5 cm de comprimento), e pelo indumento de pêlos curtos (em contraste com o aspecto hirsuto do Helianthemum teneriffae, endémico de Tenerife). Floresce de Maio a Junho e tem preferência por lugares de altitude elevada, tanto assim que há quem lhe chame jarilla de monte. Como invariavelmente sucede na família das cistáceas, as flores duram poucas horas antes de deixarem cair as pétalas. Por isso o encontro com uma planta florida é sempre uma ocasião feliz, e o fotógrafo sabe que não há tempo a perder: a foto é para tirar agora, pois no regresso pode já ser tarde.

06/12/2022

Cravos de Outono

É fácil ser planta. A vida é um pouco parada, é certo, mas não lhe falta um propósito nem uma agenda de tarefas, que cumpre escrupulosamente. Com os dias geridos pelos genes, não se aflige com o destino ou com a morte, nem busca uma razão divina para a sua presença no planeta. Tem de competir por espaço e recursos, mas não inicia uma guerra por isso. Trata-se apenas de sobreviver até garantir descendência, e nisso o tempo, nosso inimigo, é o seu maior aliado.

Ainda que a comparação com as espécies animais seja inapropriada, e neste âmbito seja raro haver certezas, parece que, quando existem, as raízes funcionam como o cérebro das plantas, coordenando as várias fases do seu ciclo de vida. As flores, porém, dedicadas àquela que é a tarefa mais relevante para a espécie, são criadas para serem belas e atrairem polinizadores. Não admira que durem pouco. Em milhões de anos, por adaptação a novos polinizadores ou a novos habitats, as flores podem mudar bastante de forma, tamanho, época de maturação e período de abertura. E de pétalas.

Dianthus broteri Boiss. & Reut.


As pétalas fimbriadas, ou de margens finamente divididas, parecem um esforço de beleza um pouco exagerado, mas é um pormenor presente na floração de inúmeras famílias. A função biológica desse detalhe na pétala, em geral o orgão mais simples da flor, varia com as espécies. Dizem que é bastante comum naquelas que os polinizadores visitam de noite. Percebe-se porquê: para o reconhecimento da flor, mal o insecto aterra nela, ajuda tactear a textura da flor e sentir o aroma do néctar; mas a aproximação dos insectos à flor faz-se confiando na informação visual. Ora, é garantido que, na escuridão do fundo, a franja longa das pétalas, em combinação com a sua coloração clara e o movimento das fímbrias, aumenta a visibilidade das flores.

Se o leitor já usou, para aromatizar a casa, uns frasquinhos de líquido perfumado onde se mergulham umas varas finas de madeira dispostas em cone, ou em leque, talvez conjecture, como alguns botânicos, que a divisão fina das pétalas pode também servir para espalhar melhor o perfume das flores, sinalizando sem ruído a sua presença. Faltam testes comparativos e experiências de campo credíveis para tornar plausível esta explicação. Mas sabe-se que, em milhões de anos de adaptações, houve espécies cujas flores mudaram de figurino, ganhando e perdendo a franja nas pétalas várias vezes. Um evoluir da arquitectura das corolas em tudo semelhante ao rodopio anual da nossa moda de Outono-Inverno.