Ervas do sul
Mesmo as plantas anónimas que parecem acompanhar-nos por todo o lado, e que se instalam com grande à-vontade em taludes e bermas de caminhos, podem ser motivo de surpresa. Consideremos, por exemplo, os dentes-de-leão: é habitual vê-los em relvados ou despontando nas rachas dos passeios, denunciando pela sua presença mais ou menos conspícua o grau de zelo (ou falta dele) de quem deveria cuidar desses espaços. A parte interessante é que, sendo cada dente-de-leão por si só uma planta bonita e digna da nossa atenção (a jardinagem que defendemos e, em pequena escala, praticamos é outro nome para a anarquia), há muitas plantas diferentes que se escondem sob essa designação imprecisa. Até dentro do género Taraxacum — que é quase intratável do ponto de vista taxonómico e reúne a maioria dos dentes-de-leão que vemos nos relvados — é grande a diversidade, e há várias outras compostas que, pelos seus capítulos amarelos formados exclusivamente por florículos ligulados (não se distinguindo, como acontece nos malmequeres, um disco central de florículos tubulares), merecem também ser chamadas dentes-de-leão. Dessas, a mais bem sucedida entre nós parece ser a Hypochaeris radicata, que aparece de norte a sul do país (sem falhar as ilhas) tanto em jardins citadinos como em ambientes rurais. Mas há dentes-de-leão não tão adaptáveis, alguns deles restritos a um tipo preciso de habitat: por exemplo, a Reichardia gaditana, prima da planta que hoje destacamos, é exclusiva de dunas marítimas e pouco tolerante a perturbações do habitat. Já a Reichardia picroides (fotos acima) não parece ser tão picuinhas, beneficiando por isso de uma distribuição mais ampla, que no caso de Portugal continental abrange grande parte do centro e sul do país. Não se lhe conhecendo preferência marcada por lugares alterados, não podia, até há poucos anos, ser qualificada como planta ruderal. Nota-se, contudo, que em anos recentes ela se vem expandindo para o norte do país, e aí qualquer recanto lhe serve de poiso: na ânsia de firmar raízes em território novo, abdica de qualquer exigência e assume descomplexadamente um comportamento low life.
As fotos que ilustram o texto foram captadas há oito anos junto à praia de Adraga, em Sintra. Porque a nossa geografia é mais nortenha, não era planta que víssemos com frequência, e por isso a submetemos a uma sessão fotográfica. A falta de familiaridade não nos permitia, no imediato, saber se estávemos em presença da Reichardia picroides (como depois se confirmou) ou da sua congénere Reichardia intermedia. Uma diferença decisiva é que as brácteas involucrais da segunda têm uma margem escariosa mais ampla — compare esta imagem com a 4.ª foto aí em cima. Nos anos que entretanto decorreram, não voltámos a Sintra, mas continuámos a encontrar a planta, e em lugares cada vez mais a norte. Vimo-la em São Jacinto (Aveiro) e em Gaia junto ao Cabedelo. Um ou dois anos depois atravessou o Douro, e agora, se quisermos novamente fotografá-la, não precisamos de sair da nossa cidade. Instalou-se não propriamente numa viela de má fama, mas numa daquelas pequenas ruas de traseiras onde sobrou um muro velho entre dois prédios de betão e vidro. Vá-se lá entender o que faz as plantas mexerem-se.