30/10/2023

Codesso das alturas



Seja na alta montanha ou à beira-mar, os ventos persistentes em zonas desabrigadas têm muitas vezes o efeito de vergarem a espinha às árvores, obrigando-as a adoptar uma postura rastejante; e elas, impedidas de crescer na vertical, resignam-se a fazê-lo na horizontal. No (defunto) pinhal de Leiria, em zonas mais próximas do mar, eram comuns os chamados pinheiros-serpente — e, de facto, as condições para tão estranha forma de crescimento repetem-se em grande parte do litoral português. Se ascendermos às montanhas, há arbutos que só admitem crescer rentes ao solo, formando tapetes de poucos centímetros de espessura. O zimbro-rasteiro (Juniperus communis), que em Portugal se restringe à serra da Estrela (onde é abundante) e à serra do Gerês (onde é escasso), é um exemplo emblemático desse fenómeno.

A planta abaixo retratada, habitante da caldeira de Taburiente na ilha de La Palma, nunca seria exactamente uma árvore — mas, em condições menos agrestes, formaria um arbusto erecto e compostinho, com mais de dois metros de altura. O género de leguminosas a que pertence, Adenocarpus, não costuma destacar-se pela longevidade, talvez por essas plantas serem parte daqueles matos indiferenciados tantas vezes cortados para lenha ou queimados. A ideia de um codesso monumental (tanto em Portugal como em Espanha, codesso é o nome vernáculo dos Adenocarpus) é tão estranha como a de uma giesta ou de um tojo monumentais. No entanto, é forçoso admitir, contemplando-lhe o tronco com quase meio metro de espessura, que este particular codesso de La Palma possa ter muitas dezenas de anos de vida. Não foi a idade que o vergou, mas o vento. E na mesma zona, que é a de maior altitude na ilha, rondando os 2400 metros, vivem muitos outros codessos de idade avançada, todos eles rastejantes por culpa dos ventos. Pelo menos para aqueles arbustos que sobrevivem à fase juvenil, será que o ambiente agreste e o ar rarefeito da montanha é propício à longevidade?

Adenocarpus viscosus subsp. spartioides Rivas-Mart. & Belmonte


Caracterizados pelas folhas trifoliadas persistentes, pela ramagem profusa e destituída de espinhos, e pelas flores amarelas dispostas em cachos terminais, os arbustos do género Adenocarpus perfazem dez espécies na Peninsula Iberica, seis delas presentes em Portugal. Nas Canárias são três as espécies reportadas, todas endémicas do arquipélago: A. ombriosus (só em El Hierro), A. foliolosus (em todas as ilhas excepto Lanzarote e Fuerteventura) e A. viscosus (apenas em Tenerife e La Palma). A primeira é um arbusto que não ultrapassa 50 ou 60 cm de altura, enquanto que as outras duas atingem envergaduras respeitáveis, podendo o A. foliolosus ascender aos 4 metros. A distinção entre as duas espécies presentes em várias ilhas pode fazer-se pelos cálices (que são densamente pelosos mas sem glândulas no A. foliolosus, e glandulosos com pêlos esparsos no A. viscosus) e pelas vagens (só as do A. viscosus são glandulosas — confirme-se na 3.ª foto acima). Do A. viscosus reconhecem-se duas subespécies, a subespécie nominal apenas em Tenerife e a subsp. spartioides (ilustrada nas fotos) exclusiva de La Palma, justificando-se a segregação pelo comprimento das folhas: são muito mais alongadas as da subespécie palmense (14 mm contra 3-7 mm).

21/10/2023

Orejas de Los Muchachos



Uma revisão exaustiva do género Cerastium nos arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias, publicada em 1966, identificou três espécies endémicas perenes na Macaronésia com acentuadas semelhanças morfológicas:

(a) Cerastium azoricum, endemismo dos Açores cuja distribuição se restringe às ilhas das Flores e Corvo. Aprecia rochas e ravinas húmidas desde a costa até altitudes acima dos 500 m. Floresce entre Maio e Julho.

(b) Cerastium vagans var. vagans, endémica da ilha da Madeira, planta rara que vive em escarpas rochosas na zona montanhosa central, entre os 900 e os 1800 m de altitude, onde a chuva é moderada durante quase todo o ano e não há grandes variações de temperatura. As flores são de Verão, entre Julho e Agosto.

(c) Cerastium sventenii, endemismo das Canárias com presença apenas confirmada em El Hierro, La Palma e Tenerife. A floração decorre entre Maio e Julho e as inflorescências contêm 6 a 8 flores. Habita paredes rochosas húmidas em bosques temperados de alta montanha entre os 1500 e os 2400 m. As fotos do C. sventenii são do Roque de los Muchachos, o pico rochoso mais alto de La Palma e que fecha a caldeira do vulcão Taburiente a norte. Os exemplares em flor estavam a cerca de 2400 m de altitude, mas nessa altura (era Maio) a maioria das plantas que vimos não tinha ainda iniciado a floração.

Cerastium sventenii Jalas


As plantas destas três espécies são hirsutas, com ramos erectos, folhas lanceoladas opostas e flores de pétalas brancas mais longas do que as sépalas. Têm ainda em comum o facto de serem espécies ameaçadas, seja por perda de habitat seja pela herbivoria, sobretudo por cabras que se empinam facilmente nas falésias e não resistem às ervas verdinhas. Contudo, há também diferenças a assinalar, sobretudo entre a espécie açoriana e as outras duas, e essencialmente no que se refere aos requisitos climáticos e de habitat. O autor do tal estudo, Jaakko Jalas, mais atento à anatomia das plantas, notou que as folhas da espécie açoriana são mais largas, com uma nervura central de secção triangular (circular no caso do C. sventenii, com um formato intermédio no C. vagans); e também que os cálices das flores açorianas são ligeiramente maiores, embora, em contrapartida, as inflorescências sejam menos vistosas e as sementes bastante mais pequenas. Tamanhos e preferências ambientais à parte, parece estar por fazer um moderno estudo genético de comparação entre estas três espécies, e também entre elas e algumas orelhas-de-rato europeias (como o C. arvense ou o C. gibraltaricum, candidatos a parentes próximos), para se conhecer a origem das plantas da Macaronésia e se obter uma identificação segura destes endemismos.

Curiosamente, no artigo em que se reporta o referido estudo taxonómico é mencionada a presença de uma população de Cerastium na ilha de São Jorge, registada por Tutin e Warburg em 1932 como C. vagans var. ciliatum. Não foi reencontrada depois disso, mas não deixa de ser uma boa notícia, ainda que algo atrasada, e que nos fará agendar trabalho de campo para uma próxima visita a esta ilha.

09/10/2023

Falésia dos cabeçudos



A ilha de La Palma tem o formato de uma pêra alongando-se no sentido norte-sul, delgada a sul e achatada a norte. No extremo sul os montes descem gradualmente para o mar, mas a norte a ilha é rematada por falésias quase a pique, com alturas variando entre os 200 e os 300 metros. A despeito da aparência formidável, as falésias não formam barreira intransponível: aqui e ali, rompem-nas os vales profundos dos barrancos. Cavados por ribeiros que, hoje em dia, só por excepção levam água, tais barrancos permitem, aos caminhantes mais ágeis e intrépidos, o acesso ao mar em alguns raros pontos. Se não lhes for possível chegar mesmo ao pé do mar, hão-de pelo menos conseguir que as ondas os salpiquem. Nestes vales orientados a norte, e apesar dos ribeiros sem água, o recorte acidentado dos barrancos e a incidência menos intensa da luz solar criaram recantos de comparativa frescura. Neles se desenvolveu uma vegetação exuberante, em regra dominada por espécies endémicas. Entre as aldeias de Gallegos e El Tablado, são vários os barrancos verdejantes que à riqueza florística aliam um valor cénico invejável, e não é surpresa que toda esta área costeira tenha sido declarada reserva natural. Entre os arbustos, são as tabaibas (Euphorbia lamarckii e Euphorbia balsamifera) e os cardónes (Euphorbia canariensis) que, na paisagem, monopolizam o olhar. Mas há plantas mais discretas brotando em fendas de rochas ou abrigadas em pequenas bolsas terrosas. Pelo menos uma delas é endémica destas falésias e barrancos: só existe nesta ilha, e só neste lugar.

Cheirolophus sventenii (A. Santos) G. Kunkel subsp. sventenii


A planta em questão, Cheirolophus sventenii subsp. sventenii, não é caso único no seu género. Das 18 espécies ou subespécies de Cheirolophus endémicas das Canárias, só uma (C. teydis, de Tenerife e La Palma) ocorre em mais do que uma ilha; a maioria delas são raras e têm áreas de distribuição exíguas. O relevo abrupto da ilha decerto favoreceu o isolamento reprodutivo, e são nada menos que sete os Cheirolophus endémicos de La Palma. Aquele de que hoje nos ocupamos é, apesar de tudo, dos mais fáceis de encontrar.

Cabezónes é como são chamados os Cheirolophus nas Canárias. Vivendo este na costa de Guelguén e na reserva natural do mesmo nome, foi inevitável baptizarem-no como cabezón de Guelguén. É um arbusto de 80 a 100 cm de altura, com grandes folhas glabras e lustrosas, de margens ligeiramente serradas. Os capítulos são de um branco levemente amarelado, e as brácteas involucrais são rematadas (como é regra no género) por um apêndice laciniado, que nesta subespécie apresenta segmentos muito curtos. Também em La Palma, mas na costa oeste da ilha, ocorre o Cheirolophus sventenii subsp. gracilis, com folhas mais estreitas, pedúnculos mais alongados e lacínias das brácteas distintamente mais compridas (fotos nesta página).

Ainda que o vento tenha dificultado a tarefa do fotógrafo, foi gratificante encontrar em flor logo em Maio, no início da temporada a isso dedicada, uma planta tão bonita e tão escassa — valendo-nos por todos os Cheirolophus que não encontrámos ou, tendo encontrado, não vimos em flor. O cabezón do Teide, abundantíssimo nas altas montanhas de Tenerife, nunca se dignou a mostrar-nos as flores (essas sim amarelas), alegando só poder fazê-lo em datas que não nos convinham.

02/10/2023

A viagem dos massarocos

Somos uma espécie fascinada pelo passado, inquieta com o que a memória não guarda ou, pelo contrário, não é capaz de esquecer. E há ainda o passado muito longínquo, fora das nossas lembranças, que queremos a todo o custo reconstituir — incluindo perceber como é que os dinossauros, tão grandes e poderosos, se extinguiram. Sem testemunhas, buscam-se dados nos registos que a Terra conserva. As interpretações dessa informação que os cientistas publicitam são por vezes controversas — afinal a ciência não é uma doutrina — mas há capítulos da história da Terra que são consensuais. Exemplo disso é o relato da radiação evolutiva das espécies endémicas do género Echium nas Canárias, Madeira e Cabo Verde.

Echium perezii Sprague


A análise de vários marcadores genéticos (que pode ler-se aqui) em mais de 30 destas espécies de massaroco (ou tajinaste, para usar o nome espanhol) indica que todos estes endemismos do género Echium na Macaronésia derivam de um antepassado comum, oriundo da região mediterrânica. Os indícios apontam ainda para a existência de um único evento de colonização, que terá ocorrido nas Canárias há milhões de anos; as espécies que ali nasceram como resultado do isolamento insular ter-se-ão depois disseminado para os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde. Tendo em conta os ventos dominantes em torno dos três arquipélagos, crê-se que, neste processo de disseminação de sementes a tão grandes distâncias, as aves terão tido a maior parte do mérito.

Mas há ainda um pormenor da história dos massarocos endémicos das Canárias (mais de 20) a que vale a pena regressar. Apesar de descenderem de plantas do continente, que são todas herbáceas, algumas destas espécies insulares de Echium são arbustos lenhosos e perenes (apresentando uma roseta basal de folhas ou inúmeros ramos a formar um candelabro). Além disso, são vários os que florescem apenas uma vez, ao fim de dois anos de vida (digamos), gerando uma inflorescência gigante em espiga com milhares de flores, e morrendo em seguida.

Echium gentianoides Webb ex Coincy


Estas diferenças de morfologia e ciclo de vida estão decerto relacionadas com a diversidade de habitats nas ilhas da Macaronésia, sem grandes herbívoros, com clima quente e solo vulcânico rico em nutrientes. Mas que lucro há afinal em serem plantas lenhosas se florescem uma única vez, ainda que abundantemente? Segundo os estudiosos, e o bom senso, a longevidade é sempre uma vantagem quando se compete. E, numa fase da história das ilhas em que haveria poucos polinizadores, terá sido mais benéfico investir numa única época de floração exuberante, em vez de gastar energia anualmente nesse processo sem tanto proveito. Ora, convenhamos, para se sustentar uma inflorescência com tamanha abundância de flores, é boa ideia começar por fincar bem o pé no chão, de preferência com uma roseta larga de folhas robustas e um tronco firme.

Sendo indesmentível que estes endemismos da Macaronésia são colonizadores competentes, surpreende-nos que nenhum tenha conseguido instalar-se no continente europeu, fechando o ciclo desta disseminação do género Echium. Ou será o Echium boissieri um torna-viagem?

Echium webbii Coincy