No interior da outra margem
Frondosa sombra dos plátanos no Parque de Nossa Senhora da Saúde, Carvalhos, Gaia
Tirando os meses iniciais e um interregno de três anos quando já adulto, Vila Nova de Gaia foi a minha casa durante os meus primeiros trinta anos de vida. Este preâmbulo é necessário para que o que se segue não seja tomado como apontamento sobranceiro de quem paira acima da miséria alheia.
Gaia, propriamente falando, não existe: o seu miolo urbano reduz-se ao casario ribeirinho e a uma longa faixa rectangular centrada na avenida da República. O que há é uma colecção de antigas povoações (vilas umas, aldeias outras) que, por conveniência administrativa, foram agregadas num mesmo concelho: Valadares, Canelas, Avintes, Afurada, Pedroso e tantas outras que, no pouco que mantêm do seu carácter original, dificilmente poderiam ser mais contrastantes. Mas o rolo compressor de uma modernidade sem freio vai esbatendo essas diferenças: por todo o lado se rasgam vias rápidas e se erguem casas e prédios desordenados; novos moradores, aos milhares, caem de pára-quedas numa terra de ninguém.
Gaia é um território vasto, labiríntico, semeado de aleijões. Tirando um ou outro taxista, nenhum gaiense verdadeiramente conhece ou quer conhecer Gaia: pois que pode mover o morador de um subúrbio incaracterístico a uma incursão noutro subúrbio idêntico no mesmo concelho?
E que dizer de jardins, de lugares onde possamos exercitar os sentidos que se fazem apáticos para se defenderem da fealdade? Há poucos jardins públicos em Gaia: não mais que meia-dúzia e, com excepção do Jardim do Morro, muito pequenos; a sua área total é insignificante se comparada com a dos hipermercados e grandes centros comerciais que nas duas últimas décadas se multiplicaram por todo o concelho. Mas há ainda alguns locais arborizados que, com adequado tratamento paisagístico, poderiam vir a ser parques urbanos aprazíveis: por exemplo, o Parque de N. Sr.ª da Saúde, nos Carvalhos, e o Monte da Virgem, em Vilar de Andorinho. Em ambos os casos, haveria que disciplinar o estacionamento e, no que toca à vegetação, substituir gradualmente, nas matas circundantes, eucaliptos e acácias por espécies autóctones. Essa regeneração teria importância especial no Monte da Virgem, onde subsistem povoamentos de sobreiros e carvalhos.
A terminar, duas curiosidades. No topo do Monte da Virgem, em redor da igreja, todas as árvores (até as vadias das acácias!) vestem meia-calça branca como em sinal de pureza. E no Parque de N. Sr.ª da Saúde locais há, como o prado sombreado por plátanos que se vê na foto acima, onde, avisam as tabuletas, não é permitido jogar a bola, jogar a malha ou andar a cavalo. A terceira proibição terá sido lembrança de última hora, não fosse parecer que só os divertimentos da classe popular estariam interditos: é que no Monte da Virgem há avisos de teor semelhante, mas não se excluem os cavalos; e, em todo o caso, quem anda a cavalo terá sítios melhores para ensaiar os seus trotes.
Tílias de meia-calça - Monte da Virgem, Gaia
Fotos: pva 0405
3 comentários :
«Mas o rolo compressor de uma modernidade sem freio vai esbatendo essas diferenças: por todo o lado se rasgam vias rápidas e se erguem casas e prédios desordenados; novos moradores, aos milhares, caem de pára-quedas numa terra de ninguém»
Bem visto e melhor escrito!
E ainda bem que avisou: a Senhora da Saúde fica definitivamente riscada dos possíveis locais para aperfeiçoar os meus trotes.
S. (de Sementinha ;-)
Olá
Caí neste blog por acaso e fiquei deslumbrada como uma parolinha... Adoro árvores de paixão, mas conheço muito pouco. Vou-me tornar leitora assídua.
Por acaso já me perguntei várias vezes sobre o porquê da "meia calça branca"...
Bem-vinda!
Fui espreitar A Casa dos Miados, e sei quem também vai gostar...
Enviar um comentário