14/05/2007

Caminhos de água



Londres: o Regent's Canal entre Victoria Park (à esquerda em cima) e Islington (à direita em baixo)

Embora a Inglaterra não seja a Holanda, é possível num barco a motor ir de norte a sul e de este a oeste do país usando uma ampla rede de canais artificiais. Construídos para transporte de mercadorias, foram o caminho-de-ferro já no século XIX e a revolução rodoviária no século seguinte que lhes retiraram toda a função utilitária. Não que tivessem ficado ao abandono: nos canais londrinos vêem-se famílias inteiras a bordo dos barcos estreitos e compridos que preguiçam água abaixo ou água acima; os caminhos marginais (towpaths, usados para puxar os barcos à corda no tempo em que não havia motores) enchem-se de ciclistas, passeantes, trotadores (tradução possível para joggers), pescadores à linha, gente com cães pela trela, vagabundos bebendo cerveja em lata, e um ou outro turista desorientado.

A construção do Regent's Canal, segundo plano do arquitecto e urbanista John Nash, decorreu entre 1812 e 1825. O canal descreve um arco com uma extensão aproximada de 13,7 Km entre Paddington (a oeste de Londres) e as Docklands (a leste), onde desagua no Tamisa; cinge o Regent's Park no seu limite norte, bissectando o Zoo de Londres, e passa depois por Camden Town, pela estação de King's Cross, por Islington e pelo Victoria Park. O caminho para peões é interrompido nos dois ou três pontos onde o canal mergulha em túneis de extensão variável - o mais comprido deles, o túnel de Islington, ultrapassa os 800 metros - e só de barco é possível conhecê-lo de uma ponta à outra. Não que eu tivesse tamanha ambição: contentei-me em palmilhar contra a corrente os 4 km de Victoria Park até Islington. Esse troço atravessa Hackney, uma das regiões mais pobres de Londres, e o cenário dos bairros sociais, torres de habitação e velhos armazéns não é dos mais agradáveis de se ver. Mas há sempre manchas de arvoredo, alguma vegetação espontânea, bandos de patos e de gansos, e até uma public house de portas abertas para o canal. O curso das águas é por vezes quebrado por sistemas de comportas: são as eclusas (a que os ingleses chamam locks), elevadores aquáticos para que os barcos vençam os desníveis no leito do canal.

Os dois extremos do meu percurso, no Victoria Park e em Islington, compensam largamente o que de menos bonito encontrei no caminho. O canal acompanha em linha recta todo o extremo oeste do Victoria Park, que lhe retribui a gentileza resguardando-o sob uma alameda quase ininterrupta de tílias e plátanos. Em Islington, entre os arcos de uma ponte e do túnel, o canal alarga-se em mais um porto de abrigo para barcos: há árvores de ambos os lados e os jardins particulares estendem floridas ramadas sobre o muro. O silêncio e o sossego são inacreditáveis; mas dois lanços de escada devolvem-nos abruptamente ao tumulto da cidade.

1 comentário :

bettips disse...

Obrigada, Paulo. Humanizada a cidade, é o que eu sinto lá. Passei em Camden Lock, na eclusa. Outra vez do Zoo, a ver aquelas traseiras de casas, o verde, a paz impossível...Um espanto.Abç