10/08/2007

Reedição da obra de João de Araújo Correia

Uma boa notícia: a Imprensa Nacional - Casa da Moeda iniciou a reedição da obra do duriense João de Araújo Correia, um dos grandes contistas e cronistas portugueses do século XX e um prosador exemplar. O livro acabado de sair intitula-se Contos e Novelas I, e colige os três primeiros livros de contos publicados pelo autor: Contos Bárbaros (1939), Contos Durienses (1941) e Terra Ingrata (1946). O segundo destes livros não conhecia edição desde 1970, mas os outros dois haviam sido reeditados em 1983 e 1985 pela Editorial Estampa, cuja projectada reedição das obras completas de JAC se gorou ao fim de quatro volumes. Em 1999 a Campo das Letras fez sair uma descuidada antologia com o título O Mestre de Todos Nós - e é tudo quanto a edições de JAC nos últimos 30 anos, numa rarefacção que, se dificultou a sua chegada aos leitores, fez esfregar as mãos de contentes aos alfarrabistas.

Como os nossos visitantes mais assíduos poderão saber, João de Araújo Correia foi também (e por isso já aqui o trouxemos muitas vezes) um incansável defensor das árvores nas crónicas que escrevia regularmente para a imprensa - e isto num país onde quase toda a gente as desdenha. Nada melhor para comemorar esta edição do que (re)lermos hoje uma dessas crónicas.

.......Passarinhos
.......Júlio Brandão queixa-se no Janeiro da falta cada vez maior de passarinhos na terra portuguesa e atribui essa calamidade, pungente para o seu coração de poeta, à sanha com que o rapazio persegue a ave no ninho e fora do ninho.
.......Há muitos anos se afirma que os pássaros vão rareando. Eu era estudante e seria quando ouvi dizer a um médico militar da minha terra, Canelas do Douro, que as miríades de pássaros da sua infância estavam reduzidas a meia dúzia de bicos.
.......- Já não há pássaros, concluía.
.......O que não lhe ouvi foi explicar a causa da extinção das avezinhas. Não a atribuiu ao rapazio. Não a atribuiu a nenhum outro malefício.
.......Fiquei sem saber o motivo do êxodo dos pássaros até ao dia em que minha mãe me contou a história das árvores na nossa aldeia. História simples, breve, dolorosa como é quase sempre história de árvores em país idólatra de descampados. Narrava minha mãe que o terreiro onde se fazia a feira, a rua de S. Vitorino e a colina sobranceira ao povo eram rios e mares de verdura. Rematava, dizendo que esse arvoredo fora sacrificado a caprichos públicos e particulares. Lo de siempre, como diria o Campoamor se escrevera sobre árvores uma dolora.
.......Minha mãe, coeva do médico, deu-me sem querer a explicação que ele omitira. Se a nossa aldeia tinha sido toda ela uma árvore e a árvore tombara, com ela tinham perecido os passarinhos que a habitavam.
.......No tempo em que a minha aldeia era arvoredo, embora os rapazes se entretivessem a matar os pássaros, não os matavam todos. Ficavam bandos deles para regalo de ouvidos e olhos sentimentais. Não é certo que a maior parte das avezinhas vivem nos ramos?
.......A destruição das árvores, na minha opinião, é a causa do sumiço das aves da minha aldeia. Foi, pelo menos, causa importante. Na terra pelada, não cantam aves.
.......O que sucedeu lá em cima, no meu povoado, sucedeu por esse país fora... Jurou-se guerra à árvore em nome de qualquer princípio de mim desconhecido. Ouvi dizer que é por higiene, estética ou urbanismo que as árvores se arrancam ou degolam. Eu creio que sim, que é por isso tudo, mas a higiene, estética e urbanismo dos arboricidas estão acima do meu entendimento. Paciência... Sei ao menos que a falta da folhagem é causa de nos ir faltando em cada Primavera a poesia dos ninhos e das asas. Faz que a paisagem emudeça quando devia cantar.
.......Não será apenas o arboricídio o motivo de tão lúgrube mudez. É crível que os naturalistas lhe assinalem outro. Não estará a Natureza cansada de produzir pássaros para olhos cegos e ouvidos surdos? Não sei. Sei que os pássaros faltam e que a falta é demasiado grave para certas almas.
.......A educação do rapazio seria óbice ao desaparecimento das aves se fosse possível realizá-la a tempo... Não é. O rapazio é bárbaro por inocência. Destrói o ninho e mata o pássaro com impassível candura. Cuida que faz bem. É milagre vencer-se uma obstinação angélica. A espingardinha é uma açucena.
.......Coibir a guerra à passarinhada seria acertado... O pior é que exigiria um polícia ao pé de cada moço - um polícia que talvez se entretivesse a ensinar pontaria ao menino bonito.
.......Meu caro poeta Júlio Brandão: os pássaros ainda cantam. São poucos? Contentemo-nos com migalhinhas.
.......Originalmente publicado no Jornal de Notícias
.......
Incluído em Três meses de inferno (1947)

2 comentários :

Anónimo disse...

Pois penso que o facto de haver menos pássaros, ou a sua deslocaçãO para outras paragens poderá estar relacionado com as alterações alimentares. Estou a lembrar-me que na minha aldeia que fica entre Douro e Paiva todos os campos eram cultivados com milho, trigo ou centeio, e o que se vê agora!... Por outro lado há agora por lá aves que outrora não apareciam, os corvos bem como animais terrestres, javalis.

bettips disse...

1947? O que se perdeu desde então... Revisitei há dias o sítio onde nasci. A medo. Debrucei-me no muro: lixo, abandono. Ao longe, duas palmeiras sobreviventes. Eu nasci ali e por trás dos muros, árvores, todas as árvores. Ah...mas é um condomínio fechado, bem fechado, e galerias, e arte, e bric-à-brac moderno, asséptico. E um páteo com bonsai, irónico, miniaturas. Fiquei a olhar, em espanto. Não há relva, há uma coisa amarela e limpa para os pés. As miniaturas e o tapete sintético fizeram-me tonturas. Se fosse pássaro, também fugia...