Erva da raiva
Sou uma pessoa pouco informada acerca de doenças. Se não me protegesse pela ignorância voluntária, iria em imaginação desenvolver os sintomas mais preocupantes. Na adolescência, quando não tinha ainda plena consciência desse meu pendor hipocondríaco, foram muitas as vezes em que me supus atingido por doenças implacáveis, que em poucos dias iriam desfigurar-me, prostrar-me em delírio comatoso ou reduzir o meu cérebro a farinha. Quando os dias passavam sem que a doença registasse progressos, acabava por acreditar que o auto-diagnóstico fora precipitado. Estóico por natureza, só uma vez revelei aos meus pais a doença que estaria prestes a fulminar-me: tratava-se da raiva. Se o socorro viesse prontamente, ainda poderia salvar-me.
O médico nosso vizinho riu-se quando lhe contei como teria sido infectado: durante uma brincadeira, fui mordido de raspão pela nossa cadela labrador, a Diana. A raiva, disse-nos ele, há muitos anos que em Portugal não era detectada em animais domésticos. Foi remédio santo: os sintomas incipientes desvaneceram-se num ápice. Optei contudo por não confessar que a verdadeira causa da minha maladie imaginaire tinha sido o conto O Morgado de Pedra-Má de José Rodrigues Miguéis (incluído em Léah e Outras Histórias — 1958), em que o protagonista sofre morte horrível após ter sido mordido por um cão raivoso. O livro — uma bonita edição da Estampa, editora que agora se dedica ao esoterismo — ainda tem lugar de honra nas estantes cá de casa, mas prefiro não reler o conto.
O contraponto das doenças inexistentes são os remédios ou mezinhas que só funcionam na imaginação. Alyssum vem do grego, e indica que a planta assim nomeada seria útil para curar a raiva. O que, como hoje sabemos, é absurdo, pois antes de Pasteur quem fosse infectado pela doença tinha a morte como certa. Como a Alyssum loiseleurii e as suas congéneres não têm, ao que sei, qualquer virtude medicinal, o melhor é esquecer as doenças e falar da planta.
As cinco espécies de Alyssum que ocorrem em Portugal, e das quais nunca me calhou encontrar nenhuma, revelam acentuada predilecção pelas serras transmontanas; mas a Alyssum loiseleurii, inexistente em território português, trocou as montanhas pela beira-mar, frequentando as dunas do sudoeste de França e do norte da Península Ibérica. É uma planta perene, de base algo lenhosa, cujas hastes prostradas, revestidas por folhas de um verde prateado, não vão além dos 20 cm de comprimento. Pode ver-se em flor em Julho e Agosto nalgumas praias menos pisoteadas da costa galega — por exemplo em Corrubedo e em O Grove. As suas populações são poucas e escassas, e a sua sobrevivência está ameaçada pela cada vez mais intensa ocupação humana do litoral.
3 comentários :
Há uma árvore, o "Prunus padus subsp. padus" cujo fruto também se acreditava ter poderes curativos sobre a raiva, razão pela qual no norte de Portugal e na Galiza a denominaram Azereiro-dos-danados. É uma espécie de evidente interesse ornamental, pelo que não compreendo a razão pela qual não é mais cultivada.
J.L.
Quem não passou, na sua meninice e adolescência, por esta fase?
Este é um belo texto, com a capacidade de conquistar a atenção, mesmo dos mais desinteressados na matéria.
Américo: Muito obrigado pela simpatia.
JL: Comentário muito oportuno o seu. Desconhecia que o Prunus padus fosse nativo de Portugal e que tivesse esse curioso nome. Não deve ser fácil encontrar por cá alguma população espontânea, mas parece que ele existe ou existiu na Serra da Estrela e na Serra do Alvão - lugares que têm ardido muito.
Tenho em arquivo fotos do Prunus padus, mas tiradas em jardins ingleses. Em Portugal acho que nunca o vi.
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