Davallia canariensis (L.) Sm. epífita em Melia azedarach L. no cemitério do Prado do Repouso (Porto)
Cabrinhas & caracóis
Evocação do poeta e naturalista Augusto Luso (1827-1902)
Na freguesia de Cedofeita, no Porto, há dois liceus que distam 400 metros um do outro: o Rodrigues de Freitas, que noutros tempos era só para rapazes, e o Carolina Michaëlis, que era só para meninas. É uma distância para fazer toda em linha recta, não fossem as pequenas correcções de trajectória a que obrigam os seis lanços de escadaria no final. A rua que possibilita o rápido trânsito do masculino ao feminino tem o nome de Augusto Luso: poeta e professor 1827-1902, é o que diz a placa. Nada mais apropriado do que homenagear um professor com uma rua que liga duas escolas.
A imortalidade toponímica é algo ingrata, pois uma rua não é um compêndio de história e não guarda memória de feitos nem de obras publicadas. Custa a crer que certos nomes petrificados em placas de ruas tenham pertencido a gente de carne e osso. Mas de Augusto Luso – de seu nome completo Augusto Luso da Silva, e que também se assinou A. Luso, A. Luso da Silva ou simplesmente Luso – é possível, graças à
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a outras obras de referência, conhecer o essencial da vida e obra. Podemos até, nas
páginas do portal TriploV, ler uma boa amostra do que escreveu em prosa e e em verso sobre, por exemplo, caracóis e ornitorrincos. Se a isto juntarmos que Augusto Luso foi professor de geografia e autor de compêndios para o ensino, compreendemos que ele não foi um literato convencional. O seu estudo pioneiro sobre moluscos terrestres e fluviais de Portugal, publicado em fascículos entre 1868 e 1872, é ainda hoje citado por malacologistas.
Outra prova de que Augusto Luso foi um naturalista sério e minucioso está no
Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus arredores, aparecido em 1872 e 1873 (volumes III e IV) no
Jornal de Horticultura Prática, influente revista mensal sobre jardinagem e agricultura que se publicou no Porto entre 1870 e 1892 (e que está disponível on-line
neste endereço). Confessa o autor no preâmbulo que a sua ambição era fazer um levantamento do país inteiro, mas, por lhe faltarem apoios, vê-se limitado aos arrabaldes da sua cidade. Ainda assim, a lista de fetos, musgos, hepáticas, líquenes e algas por ele herborizados ultrapassa a centena de espécies – e, pelo menos nos fetos (dos outros nada sei dizer), inclui quase todos aqueles que são hoje conhecidos, alguns sob outros nomes, como espontâneos na região do Porto. De cada planta, o autor faz uma breve descrição e indica alguns locais de ocorrência. É talvez o primeiro texto em língua portuguesa que torna acessível a leigos aquilo que estava confinado a tratados científicos como a
Flora Lusitanica (1804) de Brotero e a
Flore Portugaise (1809-1840) de Hoffmannsegg & Link.
Se o fascínio por lírios, narcisos e outras plantas vistosas é facilmente contagiante, já o mesmo não se pode dizer de fetos, musgos e afins; e, ao contrário do que sucede com pássaros, observar lesmas ou caracóis nunca foi uma ocupação com muitos adeptos (comê-los já será outra história). Valorizar a natureza para além de uma concepção estreita do que é «belo» ou «útil» para nós, humanos, é um passo que ainda hoje muitos são incapazes de dar. Eis o que escrevia Augusto Luso em 1872: Assim como, entre os animais do nosso país, os moluscos e, principalmente, os terrestres e fluviais, são ignorados de quase todas as pessoas, da mesma sorte as Criptogâmicas não são mais conhecidas entre os vegetais, que enriquecem e adornam o nosso Portugal. Desejando eu conhecê-las e dá-las a conhecer, forçoso me era uma exploração e uma classificação.
Está bom de ver, portanto, que Augusto Luso não demandou Áfricas. De facto, não foi além de Aguiar de Sousa e de Avintes: o seu âmbito de exploração cabe num raio de 13 quilómetros em redor do Porto. Mas, além de a observação e recolha de plantas exigirem tempo e paciência, viajar no terceiro quartel do século XIX não era o mesmo que fazê-lo hoje. Augusto Luso fala do vale do rio Ferreira, em Valongo, como se reportasse as maravilhas de um lugar longínquo: Se não fora outro o meu fim e o temer abusar da paciência dos leitores, descreveria, como pudesse, alguns destes sítios, magníficos e surpreendentes quadros, escondidos à maior parte das pessoas, convidando-as ao passeio, aonde o belo horrível do despenhadeiro, às vezes se apresenta, trazendo sempre o sublime. Sendo ele porém um poeta, não pede licença aos leitores para encabeçar a sua listagem com um intróito de 14 quadras em verso decassilábico. Eis uma delas:
Cresce a alegre Davallia nos rochedos
Sobre os rios pendentes, e fendidos
Pela força do gelo. Eis reunidos
Gratos Aspídios e Asplénios ledos.
Não podíamos estar mais longe da aridez impessoal que hoje é de lei em artigos científicos. E impõe-se a pergunta: que é feito da alegre Davallia, dos Asplénios ledos, dos gratos Aspídios? Em geral estão bem e recomendam-se. Os fetos do género Asplenium são dos mais comuns em muros e fendas de rochas de norte a sul do país. Os Aspídios também se vêem muito, mas mudaram de nome: um deles, vulgarmente conhecido por fentanha, chama-se agora Polystichum setiferum; outros, como o feto-macho, integram o género Dryopteris. São fetos que lançam tufos de longas folhas arqueadas, às vezes com mais de um metro de comprido, e que vivem em bosques sombrios e junto a linhas de água. Quem perdeu grande parte da alegria foi a Davallia canariensis, que Augusto Luso considerava, numa apreciação ainda hoje consensual, como «o mais formoso feto do nosso país». Conhecido por feto-dos-carvalhos (por gostar de se empoleirar nessas árvores) ou cabrinha (por causa do rizoma lenhoso revestido de escamas bronzeadas), as suas folhas lembram os naperons de renda com que as nossas avós enfeitavam cristaleiras. A cabrinha é espontânea na Península Ibérica, Marrocos, Madeira e Canárias; e, ainda que no continente português seja escassa e esteja confinada ao litoral, chega a ser abundante na serra de Sintra e em alguns velhos carvalhais do Alto Minho. Nos rochedos pendentes sobre o rio Sousa ou o seu afluente Ferreira é que ela já pouco salta. As serras em volta converteram-se em eucaliptais, o bucolismo foi ferido de morte por postes de alta tensão e viadutos de auto-estrada. Mas o desfiladeiro da Senhora do Salto, em Aguiar de Sousa, ainda é capaz de provocar arrepios; e, se varrermos as medonhas escarpas com um par de binóculos, encontramos aqui e ali o inconfundível recorte das folhas da Davallia, cabrinha feita águia no seu último e inacessível refúgio.
Um reencontro difícil que remata esta evocação de Augusto Luso, nome de rua, naturalista, poeta romântico e professor de geografia. Talvez ele gostasse de saber que a cabrinha, se quase desapareceu de Valongo nos 140 anos decorridos desde a publicação do seu Herbaryum Cryptogamicum, teve contudo artes de se instalar – resultado provável do seu uso em arranjos florais – em meia dúzia de árvores em Agramonte e no Prado de Repouso, os dois maiores cemitérios do Porto.
Porto, 2 de Abril de 2012