Samba a duas cores
Muitas sociedades, embora lamentavelmente não todas, asseguram hoje a cada indivíduo o privilégio de poder ter, durante quase duas décadas, uma única obrigação: a de se instruir. Nesse longo período escolar não precisa de produzir nada, nem de pagar o que consome; basta que seja curioso, que adquira conhecimentos, que aprenda a usar o seu talento. Para contrariar alguma tentação familiar de fazer render os filhos em trabalho precoce que impeça a escolarização mínima, esta é obrigatória. O sucesso deste esforço colectivo da civilização depende, claro, da qualidade dos professores e alunos, e exige uma hierarquia criteriosa nos temas a ensinar. Há que começar pelo mais simples, conteúdo que é por vezes difícil de estabelecer e nem sempre consensual. Por exemplo, em matemática, pode iniciar-se com várias instâncias em que surgem números naturais e fracções, com a comparação de formas, com a detecção de simetrias. Pouco depois, espera-se que utilizem a linguagem e as operações da aritmética com alguma desenvoltura. Só mais tarde se lhes pede que treinem o pensamento geométrico, que entendam o que é uma demonstração matemática ou que apliquem o que sabem. Uma aprendizagem mínima deve garantir que os jovens prossigam a sua vida com autonomia e êxito; frequentemente, os contributos que daí surgem, em ciência ou noutros domínios, retribuem em excesso o investimento educativo feito pela comunidade.
Do mesmo modo, para muitos amadores de botânica, a atenção às plantas silvestres começa com um capítulo fácil: as orquídeas. São de uma família evolutivamente muito avançada, que exibe estratégias de disseminação fascinantes e fáceis de observar. Além disso, têm flores sofisticadas que se avistam sem dificuldade, entre Janeiro e Agosto, nos afloramentos calcários do país. Havendo tantas espécies de orquídeas no mundo (umas vinte mil espécies distribuídas por cerca de oitocentos géneros), quem quiser pode gastar nelas todo o seu interesse pela botânica. Outros haverá que virão a apreciar fetos e gramíneas com idêntica paixão. Nenhum deles, contudo, ficará indiferente a uma orquídea que vê pela primeira vez.
Na nossa visita à Cantábria e às Astúrias, em Maio, foram tantas as novidades florísticas de que ainda nem vos demos notícia que estas orquídeas, abundantes nos prados de montanha em Somiedo e parecidas com a Dactylorhiza insularis, têm estado à espera de vez. Há um pormenor curioso nesta espécie de Dactylorhiza que nunca tínhamos observado. Em populações grandes de orquídeas é frequente surgirem umas poucas plantas com flores hipocromáticas (brancas ou em tons muito mais claros do que o usual). Na espécie das fotos, a variação relativamente à norma (flores amarelas com o labelo pintalgado de vermelho) é feita por flores vermelhas cujo desabotoar se adianta ligeiramente em relação ao das flores amarelas. Tudo indica que a cor rubra, mais vistosa, ajuda a atrair os polinizadores para um manto de flores que, se fosse todo igualmente amarelo-esbranquiçado, talvez passasse despercebido. Como estas flores não oferecem nenhuma recompensa às abelhas, seja em néctar ou em agasalho, as flores de cores diferentes permitem também distrair os insectos do logro em que vão caindo ao visitá-las.
O epíteto sambucina remete para um arbusto que decerto o leitor conhece. Lineu, em 1755, descreveu esta orquídea a partir de exemplares da Suécia, e pareceu-lhe que a inflorescência recendia a sabugueiro (Sambucus nigra). Pena que, ao contrário da tabuada que aprendemos na escola primária, não tenhamos boa memória para cheiros, menos ainda para o do sabugueiro.