07/06/2019

Histórias da Lista Vermelha: Allium schmitzii

Allium schmitzii Cout.


Um mês antes do São João já os alhos-porros silvestres (Allium ampeloprasum) começam a despontar nos campos. Foi talvez a sua aparição que nos incentivou a renovar as buscas por um outro alho que há seis ou sete anos faz parte da nossa lista de desejos. Em 2012, quando nos encontrámos em Lisboa para o lançamento do portal Flora-On, o Carlos Aguiar dera-nos a dica: a jusante da barragem de Bagaúste, na Régua, o Allium schmitzii é tão abundante que o seu cheiro se sente à distância. Fomos lá em Junho de 2013, já a canícula anunciava o inferno em que a Régua se transforma no Verão, mas desses alhos não detectámos qualquer rasto visual ou olfactivo, talvez porque a busca tivesse sido mal planeada, ou a época fosse tardia, ou esse ano a floração fosse escassa. Em 2017, o biólogo Paulo Pereira, ao serviço da Lista Vermelha da Flora de Portugal (LVF), visitou a área e confirmou a existência e relativa pujança do Allium schmitzii na Régua, tendo contado uns duzentos exemplares. Dois anos depois, chegou a vez de a nossa insistência ser recompensada, ainda que in extremis. O início de Maio deverá ser a melhor altura para observar a planta. Chegámos com três semanas de atraso, vimos-lhe os frutos (muitos) e quase nos escapavam as flores.

Endémico da Península Ibérica, o Allium schmitzii vive em leitos de cheias de rios. Em Portugal foi assinalado nas bacias do Douro, Tejo, Guadiana e Sado; em Espanha aparece sobretudo na província de Salamanca, com ocorrências isoladas na serra Madrona e nas montanhas do Sistema Ibérico. O seu habitat tem vindo a a diminuir gradualmente desde meados do século XX, quando em Portugal se iniciou o período de construção de grandes barragens. A planta já não existe nas margens do Tejo em Vila Velha de Rodão, local onde foram colhidos os exemplares usados por António Xavier Pereira Coutinho, em 1897, para descrever a espécie no n.º XIII do Boletim da Sociedade Broteriana. O enchimento da barragem de Alqueva, em 2002, quase a fez desaparecer da bacia do Guadiana. E na bacia do Douro ela parece ter sobrevivido em apenas três lugares: Régua e Bemposta, no rio Douro; e Almofala (Figueira de Castelo Rodrigo), na margem portuguesa do rio Águeda. No decorrer dos trabalhos da LVF, a existência da planta só pôde ser confirmada no Douro (Régua e Bemposta) e no Tejo (Tramagal): a somar aos duzentos exemplares na Régua, avistaram-se oito em Bemposta e uns cinquenta no Tramagal. Dir-se-ia que a sobrevivência do Allium schmitzii no nosso país está por um fio. Contudo, a prospecção foi tida como insuficiente para se obterem estimativas populacionais fiáveis, e por isso na LFV foi-lhe apenas atribuído o estatuto de "Vulnerável".

No mesmo artigo em que apresenta o Allium schmitzii, Coutinho descreve outro alho semelhante, esse colhido nas margens rochosas do rio Minho entre Monção e Melgaço, a que chama Allium schmitzii var. duriminium. O primeiro distingue-se do segundo, na opinião do autor, por ter flores menores com pedúnculos mais compridos, pelos estames salientes, pela umbela mais ampla — e, de um modo geral, pelo porte mais avantajado. Ambos estes alhos têm semelhanças marcantes, mais acentuadas na var. duriminium, com o Allium schoenoprasum, que é o cebolinho cultivado nas nossas hortas. Assinale-se porém que as flores do cebolinho, além de terem pedúnculos muito curtos que dão à umbela um aspecto compacto, são quase tubulares, com as tépalas muito mais compridas do que os estames. Na sua Flora de Portugal (1.ª edição em 1913), Coutinho muda de opinião sobre a var. duriminium, acabando por subordiná-la ao Allium schoenoprasum.

Seja ele uma variedade do A. schmitzii ou do A. schoenoprasum, esse alho duriminium parece existir apenas no rio Minho, o que faz dele um endemismo de distribuição muito mais restrita do que o A. schmitzii propriamente dito. Porém, como o troço fronteiriço do rio Minho não foi até hoje adulterado por barragens, o habitat tem-se mantido intacto, e a população de "Allium duriminium" atinge certamente as dezenas de milhares de plantas, ultrapassando largamente a do A. schmitzii. Quem visitar as pesqueiras do rio Minho por estes dias (a floração decorre principalmente em Junho) não poderá deixar de o ver.

As fotos abaixo, obtidas em Melgaço há já uns anos, permitirão ao leitor ajuizar das diferenças e semelhanças entre os dois alhos. A ecologia dos dois não é exactamente a mesma: o "A. duriminium" aparece exclusivamente em fendas de rochas, enquanto que, pelo menos na Régua, o A. schmitzii parece ausente dos afloramentos rochosos, vivendo em solos que estão encharcados ou mesmo submersos durante boa parte do ano.


Allium schoenoprasum var. duriminium (Cout.) Cout.

1 comentário :

Victor Amador disse...

Ali estava ela. Uns passos atrás para confirmar se algum clarão me havia trespassado o cérebro ou se não seria uma mera ilusão de óptica uma vez que nunca tinha tido semelhante visão em tudo diferente de todas as outras que tinha visto até então. Sim, depois do camião passar ali estava ela. Diferente do que era comum e, talvez desconhecimento meu, sem fazer a menor ideia da existência de tal criatura. Nada de extraordinário tendo em conta a quantidade enorme de espécies que desconheço. Mas a diferença é que aquela era (e é) única mas que ficava em plena cidade do Porto. Pelo menos que eu saiba.
Ora, mesmo sabendo que a sua publicitação poderá acarretar um perigo real já o facto de o fazer neste local próprio e frequentado por amantes e especialistas de botânica dá, por outro lado, a garantia que será acompanhada e alvo de atenção (se é que ainda não o é).

A questão é esta: a árvore encontra-se numa artéria longa no passeio para peões ao lado de alguns loendros e que, sendo a única da sua espécie, poderá destoar aos olhos de algum “podador” daqueles que fazem questão de podar as árvores até ao sabugo. Como se diz em algumas partes do país um corte “à escovinha”. Ou pior…

De tal abandonada e desprezada que está nem uma mera placa de identificação existe mas, porventura, ainda será o melhor para não chamar a atenção. Como ela lá foi parar já é outra questão.

Depois desta introdução restará identificar e localizar a referida árvore que dificilmente descobri nalguma literatura . Trata-se da “Erythrina crista-galli”, chamada, entre outros, como “feijoeiro-da-India” mas que não é nem feijoeiro nem da India. O que se passa é que os portugueses na sua demanda pelo mundo trocaram a América do Sul pela India e dado tratar-se de uma leguminosa (Fabaceae) baptizaram-na duplamente de forma errada. O que importa realçar é que é uma árvore magnífica que pode atingir 6 a 10metros de altura com suas flores vermelhas em forma de crista de galo daí o restritivo específico. Curioso o facto de durante a floração as folhas cairem. Estas são compostas, trifoliadas, com folíolos glabros sendo que a sua flor vermelha é o símbolo nacional da Argentina e do Uruguai.

De tudo isto resulta estarmos perante uma espécie que convém preservar não só pela sua raridade como também pela sua inolvidável beleza.

Ainda que correndo o risco de me reportar a uma situação já identificada aqui fica a minha chamada de atenção para esta verdadeira rainha da nossa flora esperando que se lhe possa dispensar a importância que merece.

O local situa-se na Rua Cidade do Recife, Viso, Porto, próximo do nº 300.


Victor Amador