29/11/2019

Festival de mini-suculentas

Crê-se, com algum fundamento, que as espécies que ocorrem nas ilhas Canárias descendem de plantas de regiões mais antigas, no continente europeu ou africano. Uma vez nas ilhas, a adaptação induziu mudanças que geraram versões autónomas, hoje endemismos com uma ténue lembrança dos seus progenitores. Ainda que pareça ser evento raro, estas espécies podem re-colonizar o continente, fazendo a viagem inversa da dos seus antepassados. Alguns estudos sugerem precisamente esse retorno relativamente ao género Monanthes, com centro de dispersão em Tenerife.


Monanthes polyphylla Haw.



As plantas deste género, suculentas que não suportam o frio, terão tido origem em regiões tropicais. Mas a maioria das cerca de dez espécies conhecidas de Monanthes está nas ilhas Canárias, ocorrendo uma nas Selvagens (M. lowei). Ou seja, de momento estão essencialmente desaparecidas no continente, sobrevivendo nas ilhas enquanto não arriscam a travessia de volta. Bem, não é exactamente assim. Tal como os cactos, não requerem cuidados de manutenção, exigindo apenas solo magro e pouca água, num ambiente quente mas sem calor excessivo. Por isso são muito apreciadas em jardinagem — um uso que pode revelar-se um método eficaz (ainda que artificial) de dispersão.


Monanthes brachycaulos (Webb) Lowe


O que se nota de imediato ao ver estas plantas é a roseta mais ou menos densa de folhas carnudas, glaucas, rosadas ou verdes, de caule curto, garantindo assim mais estabilidade quando se agarram aos taludes a pique. Na época certa (entre Maio e Junho) tem-se também a sorte de apreciar as flores estreladas, com cerca de 9 milímetros de diâmetro e pé alto penugento sobressaindo da almofadinha de folhas. Repare nas fotos como as flores têm 6 a 9 pétalas fininhas, com os estames a embelezar o arranjo que lembra pequeninos guarda-chuvas de joalharia.



Monanthes laxiflora (DC.) Bolle


A M. laxiflora pode ver-se em todo o arquipélago das Canárias, com excepção para já de El Hierro; a M. brachycaulos ocorre na Gran Canaria e em Tenerife; da M. pollyphylla, que aos nossos olhos é a mais bonita das três, há registo em Tenerife, Gran Canaria, La Palma e La Gomera.

20/11/2019

Segredos do poço da Alagoinha



O ponto mais elevado da ilha das Flores, apropriadamente chamado Morro Alto, fica-se por uns escassos 911 metros de altitude. Quem a ele ascende, porém, vê-se rodeado, mesmo no Verão, por um nevoeiro frio e cortante, quase sempre reforçado por vento e chuva. Apesar do fácil acesso por um estradão de terra, a vista que poderia atrair excursões de mirones ávidos de fotografar raramente se deixa ver. Esse nevoeiro persistente, que nos encharca a roupa mesmo quando parece que não chove, alimenta a grande esponja que é a zona central da ilha. O material que absorve e armazena a água é o Sphagnum, popularmente chamado musgão, capaz de formar almofadas gigantes que nesta ilha cobrem por completo grandes extensões de terreno. Na prática, o musgão funciona como substituto do solo, já que as demais plantas, desde o cedro-do-mato às pequenas herbáceas, são obrigadas a crescer sobre ele.

Por grande que seja a capacidade de armazenamento que a natureza fez instalar na ilha, o excesso de água tem que ser continuamente libertado, e daí as muitas ribeiras que fazem um curto mas tumultuoso trajecto desde os cumes até ao mar. Seria esse o destino dos caudais que, atirando-se de um precipício de 250 metros, formam o poço da Alagoinha, também conhecido como lagoa dos Patos. Mas a geografia trocou-lhes os planos, e antes de se acolherem ao mar, estas águas, obrigadas a um compasso de espera, juntam-se numa lagoa que é uma das imagens mais fortes da ilha.

Partindo da estrada da Fajã Grande, chega-se ao poço da Alagoinha por um caminho íngreme e escorregadio, de uns 600 metros de extensão, por entre arvoredo cerrado. Não é subida que exija grande esforço, mas por cautela deve usar-se calçado imperméavel e com boa aderência. Muitos dos visitantes que percorrem esta vereda imaginam-se envolvidos pela mais pura natureza, pouco ou nada modificada pela acção humana. Que vantagem haveria em desenganá-los? Em explicar-lhes que as criptomérias foram plantadas, que incensos e conteiras são invasores temíveis, e que da vegetação original da ilha restam neste lugar apenas fetos e algumas herbáceas? Em revelar-lhes que o anfiteatro verde rasgado por cascatas é afinal um paraíso falsificado?



Potamogeton pusillus L.


A água da lagoa dos Patos, permanentemente renovada e sem focos de poluição que a afectem, é por certo de óptima qualidade, mas as margens paludosas desaconselham os banhos. (O mesmo sucede em quase todas as lagoas da ilha das Flores; a única excepção é o poço do Bacalhau, na Fajã Grande, onde é seguro mergulhar na piscina que a cascata escavou na rocha.) Além do cenário portentoso, outros motivos há, até botânicos, para visitar este lugar. Aqui se refugia o Potamogeton pusillus, planta aquática que, numa ilha com tanta água, só existe em três ou quatro pontos, estando ausente das lagoas de maior altitude. Por não gostar de águas profundas, a planta (um emaranhado submerso de caules longos e finos, com folhas compridas e lineares, de veios centrais bem marcados) tende a concentrar-se nas margens, o que é um alívio para o observador-fotógrafo. Como é tipico do género Potamogeton, as flores estão agrupados em cachos na extremidade de hastes emersas. Fazendo jus ao epíteto pusillus, os cachos florais desta espécie são minúsculos, com 3 a 7 mm de comprimento e 3 a 5 mm de espessura, e exigem ser observados de perto. A floração, pelo menos nos Açores, parece ser estival, com o auge ocorrendo no mês de Julho. À semelhança de outras espécies aquáticas, a planta goza de uma distribuição muito ampla, ocorrendo em quase todo o hemisfério norte: Europa, Ásia, norte de África, América do Norte e América Central.

Por regra uma planta perene, o Potamogeton pusillus pode adoptar um ciclo de vida anual, o que lhe permite sobreviver em valas e charcos temporários. Assim se explica que, por contraponto à sua presença na mais pluviosa das ilhas açorianas, se tenha também instalado na Graciosa, que é a mais seca de todas. Mais normal é ter sido assinalada em São Jorge, São Miguel e Santa Maria: ao contrário do que se possa pensar, Santa Maria tem bastante água, e até conta com um número apreciável de ribeiras permanentes (coisa que não existe no Pico e no Faial, por exemplo). É indubitável que se trata de uma espécie muito rara nos Açores, embora, dada as dificuldades de prospecção, não seja de excluir que ocorra noutras ilhas além das cinco mencionadas.

15/11/2019

No bosque dos venenos em flor

É preciso o medo acumulado de muitas gerações para que uma espécie converta o medo em ira e crie, na sua evolução, um mecanismo que não apenas dissuada os predadores e eventuais inimigos, mas de facto os mate à primeira investida. Algumas espécies muito venenosas têm o cuidado de se pintar de cores garridas para avisar inocentes distraídos, ou potenciais polinizadores, mas nem todas usam dessa cautela na decoração. A Atropa belladonna, a que alguns chamam erva-moura-furiosa, é uma dessas herbáceas que não parecem fazer mal a uma mosca. Mas o seu efeito letal funciona algumas vezes precisamente por causa desse logro: as flores têm uma corola larga a lembrar uma campânula, com uma linda pigmentação axadrezada nas pétalas, e cinco estames longos mas recurvados para dentro; as bagas maduras, com cerca de 1.5 cm de diâmetro, são pretas, lustrosas, apetitosas e, dizem, doces; mas a ingestão de um bocadinho minúsculo da folhagem ou das bagas já matou reis, imperadores e gente incómoda para quem tem (ou quer passar a ter) o poder. E a reputação da belladonna nunca mais foi a mesma.


Atropa belladona L.


O nome Atropa, sugestão de Lineu, refere-se a Atropos, uma das três parcas da mitologia grega responsáveis pelo destino de cada um de nós. O fado era personificado por um fio bem fiado e medido; a Atropos cabia cortá-lo, interrompendo a vida do modo que lhe aprouvesse. O epíteto belladonna (proposto por Tournefort) conta uma história menos sombria: parte da planta era usada na Idade Média como tónico de cosmética, para ruborizar as faces e acentuar traços das belas damas de outrora.

Da família Solanaceae (a mesma das plantas que nos dão tomates, batatas, pimentos, beringelas, fisális ou tabaco), a A. belladonna é perene e nativa de regiões com clima ameno na Europa, Ásia e norte de África. É uma espécie que aprecia bosques, preferindo locais húmidos e sombrios. E foi num bosque notável do vale de Pineta, nos Pirenéus aragoneses, que a vimos. Esse é um tipo de habitat que escasseia em Portugal, e não é certa a ocorrência espontânea da A. belladona por cá.

06/11/2019

Serralha marroquina



Sonchus pinnatifidus Cav.


O limite ocidental da cordilheira do Anti-Atlas (ou Pequeno Atlas), no sudoeste de Marrocos, apresenta uma paisagem e uma vegetação que, a julgar por fotos, lembram irresistivelmente as das vizinhas ilhas Canárias. São os mesmos picos áridos e acidentados, de cores quentes, com a mesma vegetação rala dominada por arbustos rasteiros. Essa região costeira, com vales muito cavados, propícios a servirem de refúgio a um grande número de espécies vegetais, terá sido, noutras eras geológicas, o mais importante berçário da flora canária, fornecendo a maioria das plantas que iriam depois diversificar-se num número assombroso de endemismos. As afinidades observadas levaram alguns botânicos a propor a inclusão dessa região marroquina no conceito bio-geográfico de Macaronésia (cuja realidade é aliás algo dúbia, por abarcar quatro arquipélagos — Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde — com coberturas vegetais muito díspares). As convulsões climáticas do período Quaternário afectaram contudo de modo muito mais sério as massas continentais do que as ilhas atlânticas, e as duas floras, pese embora a semelhança das paisagens, reflectem uma acentuada divergência. De acordo com um artigo de 1999 dos botânicos franceses Frédéric Médail e Pierre Quézel (The Phytogeographical Significance of S.W. Morocco Compared to the Canary Islands), das cerca de 1400 espécies ou subespécies registadas no sudoeste de Marrocos menos de 3% são comuns às Canárias. Além disso, a flora das Canárias, ao contrário da de Marrocos, tem um grau muito elevado de endemicidade: de acordo com o mesmo artigo, cerca de 39% das espécies canarinas são exclusivas do arquipélago, enquanto que em Marrocos a percentagem de endémicas ronda os 9%.

A Astydamia latifolia, a Polycarpea nivea e o Sonchus pinnatifidus são alguns dos vinte e poucos endemismos partilhados por Marrocos e Canárias. Ao Sonchus pinnatifidus, hoje no escaparate, que nas Canárias apenas existe nas ilhas de Lanzarote e Fuerteventura, não será despropositado chamar serralha-marroquina. Não é fácil saber em qual das duas regiões tiveram origem estes endemismos partilhados. As colonizações podem funcionar nos dois sentidos, e uma espécie que tenha evoluído nas ilhas atlânticas, descendente de um remoto antepassado continental, pode muito bem fazer a viagem oposta e estabelecer-se no continente. É provável que tenha sido isso mesmo que sucedeu com a serralha-marroquina, representante de uma estirpe do género Sonchus, caracterizada por caules lenhosos (subgénero Dendrosonchus), que, tirando esta tímida incursão no continente africano, é exclusiva das Canárias e da Madeira.

Face a outras serralhas lenhosas como o Sonchus fruticosus da laurissilva madeirense, o S. pinnatifidus impressiona pouco, raras vezes ultrapassando um metro de altura. O porte mais atarracado reflecte a adaptação a um habitat soalheiro, árido e ventoso, onde as plantas, muito mais do que competirem entre si (como seria regra no ambiente luxuriante mas sombrio da laurissilva), tiveram de inventar mecanismos de sobrevivência. Único da sua estirpe nas duas ilhas mais orientais do arquipélago, e frequente (às vezes abundante) na metade norte de Lanzarote, o Sonchus pinnatifidus é um verdadeiro caso de sucesso adaptativo.