10/01/2021

Cardos do sol



Nos Pirenéus, acima da cintura florestal mas abaixo dos picos onde a neve persiste quase todo o ano, estendem-se pantagens nuas em colinas suavemente modeladas. É o paraíso das cabras, vacas e ovelhas, as primeiras muitas vezes sem dono e sem controlo, as outras obrigadas a fornecer-nos alimento e agasalho em troca da boa vida que levam. Todas são infatigáveis a dar ao dente para manter os campos cortados à escovinha. Haverá plantas floridas que sobrevivam a perseguição tão tenaz e sejam capazes de romper a lisura uniforme das pastagens? A pergunta, canhestramente retórica, tem um óbvio sim como resposta. Há plantas em que mesmo os ruminantes mais determinados aprenderam a não tocar, por serem venenosas, ou de sabor desagradável, ou por os espinhos tornarem a mastigação penosa. Entre as peçonhentas ou amargosas mais conhecidas contam-se os acónitos, as abróteas e os lírios. O lírio-de-folhas-largas (Iris latifolia), infelizmente já sem flores quando em Agosto visitámos Plana Canal nos Pirenéus aragoneses, brotava aos milhares pelas pastagens, convivendo pacificamente com a indiferença do gado. E a variedade espinhenta da comida-a-evitar estava bem representada pelos cardos, alguns de envergadura considerável, outros rasteiros e dourados como sóis infantis colados no chão.

Carlina acanthifolia All.


O cardo-do-sol, cuja designação oficial é Carlina acanthifolia, é de tal modo evocador do astro-rei que é costume, nas várias cadeias montanhosas europeias onde ocorre, pregá-lo em portas e janelas para repelir maus-olhados. E mesmo depois de seco ele é útil nas previsões meteorológicas: se o tempo ameaça chuva, as brácteas petalóides que envolvem a inflorescência recolhem-se; se o dia promete sol, elas mostram-se distendidas. Por isso, além de ser chamado erva-das-bruxas (yerba de broxas) em Aragão, este cardo é em França conhecido, entre outras coisas, como chardon baromètre, e em inglês houve quem propusesse chamar-lhe weather thistle.

Planta bienal ou perene, desprovida de caule, a Carlina acanthifolia produz em cada ano, durante o Verão, um único capítulo com uns 15 cm de diâmetro, composto por florículos tubulares amarelos e guarnecido por brácteas douradas, que surge aninhado no centro de uma perfeita roseta de folhas espinhentas. É espontânea em grande parte da Europa, sempre em zonas montanhosas, desde a Polónia até à Península Ibérica. É frequente nos Pirenéus, mas no resto de Espanha aparece apenas, e escassamente, em algumas serras do sudeste.

Nos mesmos habitats, e com uma distribuição em larga medida sobreposta, ocorre uma versão lunar do cardo-do-sol. Trata-se da Carlina acaulis, com capítulos menores, às vezes mais do que um por planta, formados por florículos brancos tingidos de púrpura e rodeados por brácteas prateadas. O epíteto acaulis diz-nos que este cardo não desenvolve caule, o que nem sempre é verdade. Menos vistosa e de folhagem mais agressiva do que a sua congénere amarela, a C. acaulis tem os mesmos usos meterológicos e goza de alguma reputação medicinal, ainda que dúbia. Diz a (muito incerta) lenda que a raiz da planta terá sido usada por Carlos Magno para combater a peste bubónica que dizimava as suas tropas, e que o próprio nome Carlina seria uma homenagem ao imperador inspirada por esse episódio.

Carlina acaulis L.