22/07/2006

O homem sonha, a obra nasce


Jardim da Cordoaria - Junho de 2006

Na pág. 38 do número de Julho de Porto Sempre, orgão impresso da Câmara Municipal do Porto, ficamos a saber que o Presidente da Junta de Freguesia da Vitória, António Oliveira, gostaria «de ver o Jardim João Chagas (Jardim da Cordoaria), projectado no âmbito da Porto 2001, alterado e transformado, por exemplo, num recinto desportivo com relva sintética ou num parque infantil». Sabendo como não são cordiais as relações entre Junta e Câmara, é preciso tomarmos esta informação com cautela: António Oliveira pode não querer todo o jardim convertido em recinto desportivo, mas apenas - e conforme anteriores declarações suas à imprensa - que ele seja ocupado parcialmente com esse fim. É como se, em vez de querer reconstruir a Torre dos Clérigos (situada também na freguesia da Vitória), adaptando-a a salão de festas com ganhos evidentes para a população local, ele apenas quisesse modernizá-la com elevador, marquises e ar condicionado.

Reconheça-se que a Cordoaria pós-2001 não é um lugar aprazível: vegetação sem cor e sem variedade, blocos tumulares de granito a fingirem de bancos, caminhos que não se entendem, solo artificializado assente sobre placas oscilantes, iluminação ineficaz, ausência de sanitários públicos. Mesmo com manutenção regular, o jardim seria sempre um caso difícil; o abandono a que tem estado sujeito exacerbou a degradação. Ultimamente, e perante a óbvia complacência da polícia, é mesmo usado como parque de estacionamento. Para que o jardim volte a ser atraente, é imperiosa uma intervenção de fundo que lhe restitua o carácter acolhedor, apagando as marcas do terramoto de 2001.

Apesar da descaracterização que sofreu, o Jardim da Cordoaria, construído na segunda metade da década de 1860, tem um valor patrimonial inestimável como um dos dois primeiros jardins públicos da cidade (só o de São Lázaro é mais antigo); a ele estão ligados os nomes ilustres de Alfredo Allen e do paisagista alemão Emílio David. Adulterá-lo ainda mais ou destruí-lo, como quer o presidente da junta, é acelerar o apagamento da história urbana do Porto.

Fazem falta às gentes da Vitória um recinto desportivo e um parque infantil? Pois bem, na extensíssima eira à frente da Cadeia da Relação cabe tudo isso e ainda sobra espaço para montar o palco em dias de arraial. Aliás, quando aí não funcionam a terceiro-mundista feira dos passarinhos ou o mercado de bugigangas (entretanto regressado às Fontaínhas), é precisamente esse o uso que desde 2001 tem sido dado ao largo pelas crianças da freguesia. Quantos joelhos e cotovelos esfolados não se teriam evitado se em vez de granito o revestimento fosse de relva?

2 comentários :

Anónimo disse...

Ler crónica de Ilda Castro De jardim a eirado publicada ontem n' O Primeiro de Janeiro de 21/07/06
(Transcrita integral/ nos comentários Vista para o Jardim da Cordoaria)

Anónimo disse...

Só uma pergunta: o jardim no seu triste aspecto actual não está "protegido" por direitos de autor?

Por curiosidade leia-se descrição "justificativa" (!!) do projecto de "requalificação" encomendado pela P0rto 2001 para o Jardim da Cordoaria, no site do PROAP(estudos e projectos de arquitectura paisagista),
«O Jardim da Cordoaria implanta-se, como em tantas outras situações da mesma época, como um manifesto, corporização de transformações sociais profundas, pela apropriação elegante de um espaço de características profundamente populares, num desesperado esforço europeizante de uma maneira de viver ainda autónoma e diferente. O caminho escolhido passa por um desenho de autor correspondendo a um conceito muito preciso quanto ao ambiente a criar e às formas possíveis para o habitar, substituindo um terreiro de feira e de desempenho de outras funções sociais de carácter público e agregador de multidões.

O desenho configuraria o espaço como um cenário recatado e bem isolado do exterior, espaço de lazer, de ostentação, de representação social.

Recentemente, sofre transformações que lhe alteram o sentido original sem, no entanto, lhe atribuir outro.
A decadência das zonas urbanas imediatamente contíguas, a presença de edifícios institucionais, alternadamente vazios e cheios de pessoas, a crescente violência da nossa sociedade somam-se para que o Jardim se abandone pelos seus utilizadores tradicionais.

Em resposta às crescentes reclamações quanto aos níveis de segurança do Jardim e após um intenso historial de assaltos, roubos e mesmo mortes, a manutenção é orientada no sentido de aumentar significativamente a transparência visual de todo o espaço, principalmente nos topos da Faculdade de Ciências e Torre dos Clérigos, em que a situação topográfica permitia a vigilância desde o exterior do espaço.

Mixed borders e sebes livres foram, pelas mesmas razões, substituídos por sebes talhadas de altura reduzida enquanto as árvores viam elevar-se artificialmente as suas copas.

O jardim deixava de ser um espaço fechado para passar a ser limitado por fronteiras difusas. Esta profunda alteração no sentido do espaço nunca foi, no entanto, correspondida por actuações mais profundas do que as promovidas no material vegetal. Os traçados de caminhos, a localização dos espaços de estada, os enquadramentos de estatuária surgem, assim, despropositados e equívocos.

A intervenção proposta visa assumir a fluidez das fronteiras anteriormente referidas englobando-o num espaço sem transições óbvias entre zona verde e zona inerte.
Propõe-se o redesenho de toda a área de intervenção, do Palácio de Justiça ao triângulo dos Clérigos, da Relação à Guarda Republicana como um espaço único, Praça sujeita toda ela à mesma quase obsessiva regra, espaço homogéneo apesar de constituído em realidades profundamente diferentes, de onde surgem, singulares e autónomos, os volumes da Faculdade de Ciências, do quarteirão antigo e da alameda de plátanos.

No espaço do Jardim o repetitivo padrão encontra materiais específicos - saibro, relvado e sebes arbustivas que, sujeitos ainda à mesma regra geométrica, constroem um espaço de jardim imperceptivelmente surgido da área onde é maior a expressão dos materiais inertes.
Os traçados de caminhos e a localização dos espaços de estada, organizam-se agora transgredindo a geometria regradora do desenho global, de acordo com novos fluxos e destinos. Os percursos traçam-se como vazios que interrompem a continuidade das faixas sucessivas.

A consistência celular do desenho, organizando o espaço num tecido mutável de norma regradora muito clara, identifica todo o espaço como um mesmo organismo, e torna-o reconhecível como se reconhece um corpo vivo, independentemente do tecido localmente aparente.

O desenho intervém, assim, directamente, na configuração das possibilidades e condicionamentos de utilização, pelos obstáculos que remove, actualmente muito condicionadores de alguns padrões de uso, por exemplo o nocturno, e pelas emoções que propõe ao utilizador e ao simples transeunte.»