Pedreiras devoradoras
Quercus rotundifolia Lam.
A chuva acompanha-nos desde que de manhã nos metemos à estrada, e não dá sinais de acalmar mesmo depois do almoço na Mendiga, muitos quilómetros a sul. É para andar a pé que viemos à Serra dos Candeeiros, mas não é muito aprazível fazê-lo de guarda-chuva em punho. Resta-nos pôr em prática o plano de emergência preparado para estas ocasiões: se o céu se revela ingrato, substituímo-lo pelo tecto de uma gruta. E são muitas, ao que consta, as grutas visitáveis nestas paragens. Uma rápida consulta ao mapa esclarece-nos que a gruta mais à mão é o Algar do Pena, onde há até um centro interpretativo que, além de garantir uma descida sem aventuras (não temos vocação para espeleólogos), deverá enquadrar a visita com explicações enriquecedoras.
Dirigimo-nos pois ao Vale da Trave, mas algumas das tabuletas indicativas desapareceram, e só com ajuda é que acertamos no caminho para a gruta. São cinco ou seis quilómetros por um estradão de terra batida que se bifurca várias vezes e atravessa pedreiras de dimensões gigantescas. Diz o livro-guia dos percursos pedestres do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC) que o bordo sul do planalto de Santo António é «caracterizado por intensa actividade extractiva». O que o livro deveria dizer é que esta porção do PNSAC no concelho de Santarém está a ser devorada por pedreiras, e corre o risco de desaparecer por completo num prazo de poucos anos. O novo Plano de Ordenamento do PNSAC, que esteve em discussão pública até Novembro de 2009, prevê aliás a expansão de tais explorações. Ainda assim, os autarcas da região, com o mediático presidente da Câmara de Santarém à cabeça, acham que esse plano foi engendrado pelos «beatos do fundamentalismo ambiental».
Entendamo-nos: o actual cenário é já dificilmente aceitável numa área com um estatuto de protecção mínimo. Se as coisas vão ainda mudar para pior (como permite o Ministério do Ambiente) ou para muito pior (como exigem os autarcas), então é melhor acabar com a farsa de que isto é um parque natural. Se só as pedreiras são importantes, se o esforço de preservação da natureza não traz qualquer proveito à região nem aos seus habitantes, então extinga-se o Parque Nacional das Serras de Aire e Candeeiros, e deixem de se atrair visitantes com o engodo de que esta é uma área protegida.
Mas regressemos ao caminho de que esta conversa nos desviou. Caminho esse que, aliás, não tarda terá ele próprio de ser desviado (quantas vezes já não o foi no passado?) por força do avanço das escavações. Os carrascos (Quercus coccifera) que aqui formavam densa cobertura vão sendo arrancados a golpes de escavadora, sobrando uma cabeleira rala à beira do precipício. Mais adiante, depois da gruta, na base de uma encosta que começou já, também ela, a ser retalhada pelas máquinas, desenvolve-se o mais bonito azinhal que alguma vez nos foi dado ver (primeira foto em cima): azinheiras pequeninas, de três ou quatro metros de altura, mas perfeitamente formadas, abrigando a seus pés inúmeras plantas herbáceas que dará gosto reencontrar esta Primavera. Azinheiras (Quercus rotundifolia) e carrascos são, recorde-se, os pais do Quercus x airensis, que aqui se encontra em abundância na zona de transição entre as duas espécies.
E a gruta? É que entretanto parou de chover e distraímo-nos com outras coisas, mas foi ela que aqui nos trouxe. O Centro de Interpretação Subterrâneo da Gruta Algar do Pena (CISGAP) é, segundo reza o livro-guia, o primeiro do seu género em todo o país e um dos «ex-libris deste Parque Natural». Nada se perde em espreitar, mas o CISGAP está fechado e a gruta, por isso, fica-nos vedada. Será que fecha aos sábados? Não há horário nem qualquer informação à porta. Por conversa com gente da terra, ficamos a saber que o CISGAP e a gruta estão em regra fechados e só são acessíveis por marcação prévia. Na Ecoteca de Porto de Mós, além de confirmarem essa informação, dizem-nos que apenas podemos visitar a gruta integrando um grupo mínimo de doze pessoas.
Não foi certamente para uma (não) utilização destas que se construiu um centro interpretativo com tão quilométrica designação. Este mini-roteiro do PNSAC deixa entender que a gruta teria um horário regular de funcionamento na altura em que o texto foi escrito (2001), e o mesmo aliás se depreende do livro-guia que temos usado, publicado cinco anos mais tarde.
O abandono e o descaso por parte da tutela, tão ostensivos neste episódio, são decerto responsáveis por boa parte da desilusão sentida pelas populações deste e de outros parques naturais do nosso país. Então «esses do ambiente» têm tamanha maravilha à sua guarda e fazem tudo para repelir visitantes? Realmente não se percebe.
P.S. Sobre o conflito (ou convivência) entre as pedreiras e a conservação da natureza no PNSAC, leia-se o longo comentário que Henrique Pereira dos Santos aqui escreveu a propósito do texto acima.
1 comentário :
Subscrevo o comentário sobre as pedreiras que devoram as serras do maciço calcário estremenho. Uma dor de alma… como é possível destruir um património de todos a favor do interesse de uma pequena minoria?
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